terça-feira, 31 de janeiro de 2012

PINTORA ANA MARIA

Quando decidi falar da mulher migrante e de arte, lembrei-me do nome que descobri na adolescência...Vieira da Silva, confesso que só depois me apercebi que aquela pintura magnífica era de uma muher...Maria Helena. Afinal a pintura podia ser metafísica, abstrata e bela.
Partiu, mas nunca se afastou de todos aqueles que a procuraram e que fizeram da diáspora a sua causa, ainda que muitas vezes interior. Com ingenuidade, descobri nas reproduções de Vieira da Silva dias de rigor e encanto, de estranhas perspectivas, cores entrelaçadas e as magníficas bibliotecas, para as quais não tenho palavras. Por tudo isto, Vieira da Silva - artista e mulher tem um lugar muito especial, mesmo ao lado da metáfora mais bela - o conhecimento da intuição.


praia da granja pintora ana maria

PINTORA ANA MARIA

Quando decidi falar da mulher migrante e de arte, lembrei-me do nome que descobri na adolescência...Vieira da Silva, confesso que só depois me apercebi que aquela pintura magnífica era de uma muher...Maria Helena. Afinal a pintura podia ser metafísica, abstrata e bela.
Partiu, mas nunca se afastou de todos aqueles que a procuraram e que fizeram da diáspora a sua causa, ainda que muitas vezes interior. Com ingenuidade, descobri nas reproduções de Vieira da Silva dias de rigor e encanto, de estranhas perspectivas, cores entrelaçadas e as magníficas bibliotecas, para as quais não tenho palavras. Por tudo isto, Vieira da Silva - artista e mulher tem um lugar muito especial, mesmo ao lado da metáfora mais bela - o conhecimento da intuição.


praia da granja pintora ana maria

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Maria Manuela Aguiar O CONGRESSISMO COMO ESPAÇO DE LUTA PELA IGUALDADE DE GÉNERO

INTRODUÇÃO
O CONGRESSISSMO COMO ESPAÇO DE LUTA PELA IGUALDADE DE GÉNERO

No Encontro Mundial da Maia, procuramos ir às raízes do movimento pela intervenção cívica da Mulher, em Portugal, que, a nosso modo e no nosso tempo, continuamos, olhando em especial as mulheres da Diáspora.
O que nos une e reúne, como há um século aconteceu com as feministas da 1ª República, é a convicção de que só a acção colectiva pode levar a mudanças essenciais a uma transformação da sociedade no sentido da maior igualdade de género.
O poderoso associativismo feminino, que se projectou no tempo dessas precursoras, é irrepetível e do que, na mesma época, traduziu formas inéditas de solidariedade entre as portuguesas emigradas (muito em particular na Califórnia, a nível do movimento mutualista) o mesmo se poderá dizer.
É certo que há ainda lugar para organizações exclusivamente compostas por mulheres, que desempenham um papel muito importante, sobretudo no campo tradicional da beneficência e acção social, caso da Sociedades das Damas Portuguesas da Venezuela, da Liga da Mulher da África do Sul e da Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina - de todas a mais recente. Todavia, na Califórnia, as pioneiras Sociedade Rainha Santa Isabel e União Protectora Portuguesa do Estado da Califórnia passaram a aceitar a filiação de membros do outro sexo ou a fusão com outras sociedades fraternais e mutualistas.
No século XXI, na nossa perspectiva, sem prejuízo de aceitação da bondade de outras opções, a prioridade terá de ser dada ao acesso das mulheres ao dirigismo nas organizações em que se estruturam as comunidades portuguesas, onde estão, em regra, ainda marginalizadas - o que para além de representar uma inaceitável discriminação sexista, prejudica a expansão e a renovação das próprias instituições.
O "congressismo", outra das heranças feministas do início de novecentos - entendido em sentido lato, para abranger o esforço de informação, debate, reflexão, crítica, testemunho, troca de experiências, reivindicação em múltiplos "fora" e, genericamente, eventos com projecção mediática - é ainda um dos mais eficazes instrumentos actuais ao serviço do objectivo de mobilizar as portuguesas para a intervenção nas comunidades do estrangeiro.
A organização dos vários Encontros Mundiais de Mulheres Migrantes, a partir de 1985, de conferências e debates sobre a temática de género ligada à emigração portuguesa, enquadra-se nesta visão das coisas e tem sido, frequentemente, iniciativa conjunta, ainda que através de fórmulas diversas, do governo e de ONG’s – penso sobretudo, nas que vêm sendo levadas a cabo, desde 1994, pela "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade". Esta continuada cooperação entre Estado-sociedade civil, entre mulheres e homens é, sem dúvida, um aspecto a realçar, e não se pode dizer que seja algo de alheio às nossas melhores tradições, pois, de facto, vai encontrar raízes no passado.
Nesta breve comunicação, limito-me a assinalar algumas das características singulares do exemplo português na luta pela afirmação da cidadania das mulheres e da recorrência de singularidades ou originalidades nossas, em épocas tão distintas como foram o início e o final do Século XX. Há ensinamentos a tirar, que apontam, ainda que com todos os riscos inerentes à extrapolação, para as virtualidades de uma mudança rápida do "status quo", de que os portugueses se mostraram, por vezes, tão capazes, para surpresa dos outros e, talvez, também deles próprios.

I - O PRIMEIRO PARADIGMA - O MOVIMENTO FEMINISMO NO INÍCIO DE NOVECENTOS
O movimento feminista foi, em Portugal, surpreendentemente moderno e vanguardista na medida soube resistir à tentação do radicalismo, aos excessos de uma "guerra de sexos", por um lado, e, por outro, ao mimetismo dos paradigmas masculinos, em favor de uma assunção plena do "feminismo feminino", na expressão de Carolina Beatriz Ângelo. As nossas “Avós” sufragistas, reclamaram, lucidamente, os mesmos direitos e deveres na "res publica", com a sua própria maneira de ser e de actuar, tal qual eram – em caminhada democrática e solidária, lado a lado, com os homens, numa vivência da ideia da "paridade", que teorizaram e quiseram por em prática muito antes da palavra ter feito o seu curso nas Constituições e nas leis, que hoje nos regem.
Partilhavam, como sabemos, a utopia igualitária que inspirava os movimentos de luta pela libertação das mulheres por toda a Europa e na América do Norte, mas moldaram-na à sua feição, com a força da esperança numa mutação de regime, imediatamente antes e durante o processo de consolidação da República.
De facto, entre nós, as questões de género e de regime entrelaçaram-se, num mesmo desígnio de liberdade e progresso, que parecia capaz de resolver a primeira pelo simples facto de resolver a segunda – embora, o não viesse a fazer, sem que às mulheres possa ser assacada a responsabilidade por esse desvio do que poderia e deveria ter sido o curso da história do feminismo em Portugal.
Aquela dupla pertença foi, a meu ver, a argamassa, a base sólida da especial cumplicidade que as unia aos revolucionários do sexo oposto, e as levava a situarem, claramente, a problemática da mulher no quadro global das transformações do Estado e da sociedade. Era a refundação do País que idealizavam, sem duvidar de que ela comportaria o fim de todos os privilégios, entre eles, os de sexo, assegurando, em simultâneo, a plena emancipação da metade feminina. Não era uma luta em causa própria, em favor de uma minoria - a elite da cultura ou da fortuna, a que muitas delas pertenciam - mas em favor de todas as mulheres, e, mais latamente, da sociedade portuguesa.
Viam o momento de explosão revolucionária, como um tempo de grandes oportunidades, para que estavam, porém, como o futuro demonstraria, bem mais preparadas do que os homens seus correligionários. Mas sabiam que nada aconteceria sem esforço, sem a comprovação da importância do seu contributo, muito concreto, num combate que só poderia ser ganho pela força da organização colectiva, pelo associativismo, e pela consequente demonstração pública da inteligência, da coragem, e capacidade de decisão e de intervenção cívica de toda uma geração, não apenas de algumas mulheres a título excepcional - como as que, em diferentes épocas, venceram a barreira do absoluto anonimato a que estavam destinadas, em razão do sexo, na História escrita pelos homens: Chefes de Estado, rainhas influentes nos negócios do Reino, heroínas de revoltas populares e de guerras, sobretudo nas praças de África, no Oriente, algumas invulgares escritoras ou artistas imortalizadas pelo talento... Todavia, o que é raridade não conta. e, por isso, não destruíram, com o seu exemplo solitário, os estereótipos de inaptidão da mulher comum para a coisa pública, não influenciaram o estatuto e os direitos da generalidade das mulheres, como a elite de novecentos se preparava para tentar.
A tomada da palavra perante multidões, um pouco por todo o país, com um discurso coerente e convincente, tanto por parte de nomes consagrados (Osório, Cabete, Veleda…), como de tantas jovens desconhecidas, em comícios, em "fora" de reflexão e debate, em acções de propaganda, constituiu um grande momento de viragem.
Foi, assim, no campo de acção ou de luta designado por “congressismo”, que as Portuguesas fizeram a passagem, súbita, inesperada, espectacular, do círculo doméstico, onde os costumes as confinavam, para a esfera pública, onde abriram caminhos, que levariam décadas a percorrer – e que são ainda agora a via aberta para o nosso próprio trajecto.
Outra das peculiaridades lusas, há que destaca-la, patenteia-se no papel que os homens desempenharam neste processo. Os líderes republicanos apelaram, eles próprios, à participação activa das mulheres, deram-lhe, nessa primeira década de novecentos, um papel a representar no palco das sessões de propaganda, no turbilhão revolucionário em que, por igual, se envolveram. Até então, o incipiente movimento feminista nascia à semelhante dos de outros países europeus - mais tardio, mais discreto, porventura - mas avançando, à margem de solicitações partidárias directas, com republicanas como Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete, mas também com monárquicas, como Olga Morais Sarmento Silveira, Branca de Gonta Colaço ou Domitília de Carvalho (que haveria de ser, durante o Estado Novo, deputada na Assembleia Nacional).
As primeiras tomadas de posição, com pouca visibilidade popular, estão ligadas a organizações pacifistas, como a "Liga Portuguesa da Paz", de Alice Pestana, que veio a organizar, em 1906, uma "Secção Feminista" e foi responsável pela que se poderá considerar a primeira sessão pública de um grupo feminista, que Teófilo Braga, um declarado defensor da emancipação da Mulher, prestigiou com a sua presença.
As datas são de salientar, porquanto, pouco antes, no ano de 1902, uma das participantes activas nessas iniciativas, Carolina Michaelis de Vasconcelos, olhando, com a sua mentalidade germânica, e, naturalmente, com muita preocupação, o país do sul que escolhera para viver, escrevia o seguinte:
"O combate das massas feministas, em vista de melhores condições sociais, está inteiramente por organizar"[...] "O aparecimento de uma mulher na política seria considerado uma monstruosidade".
Ora apenas dois anos depois, em 1904, Adelaide Cabete, Maria Veleda e outras fazem-se ouvir no I Congresso do Livre Pensamento. Em 1906, a própria Carolina Michaelis está entre as impulsionadoras da "Liga Portuguesa da Paz", e de manifestações em que pacifismo e feminismo se interligam. A partir do ano seguinte, acentua-se a convergência entre feminismo e republicanismo e a entrada de muitas notáveis em lojas maçónicas.
É de ressaltar a assombrosa aceleração do processo de participação feminina, neste curto período, a revelar as contradições, os anacronismos e a inacreditável capacidade de os superar de que, de vez em quando, dá provas a sociedade portuguesa, com uma plasticidade, uma maleabilidade, que não se adivinha de fora e é preciso saber descobrir, de dentro. Ainda por cima, em geral, o inesperado protagonismo feminino, essa suposta "monstruosidade", despertava nas massas um enorme entusiasmo e aplauso, demonstrando que as afinidades ideológicas superavam facilmente os preconceitos misóginos. (1)
Por parte do povo, a reacção era, sem sombra de dúvida, espontânea. Por parte das lideranças, a utilização das mulheres consumava uma hábil estratégia política. Vejamos: em 1908, António José de Almeida, Bernardino Machado e Magalhães Lemos dirigiram a ilustres correligionárias o convite para criarem "A “Liga Portuguesa da Mulher Republicana", que foi a maior das associações feministas – com cerca de um milhar de militantes - e deve a sua génese a esse convite, uma das excentricidades da história do nosso movimento de emancipação da mulher.(2) No ano seguinte, a LPMR é formalmente integrada nas estruturas do Partido Republicano, tornando-se como que o equivalente aos departamentos femininos de muitos partidos actuais.
Ao período de grande unidade, que assinalou a última fase da monarquia e a da proclamação da República, seguir-se-á o das múltiplas cisões, fatalmente determinadas pelo incumprimento das promessas do novo regime, sobretudo no que respeita ao sufrágio. (3)
Os "pais fundadores" da República, não se haviam limitado a chamar - como tantas vezes e em tantos países viria, posteriormente, a suceder - meras figuras decorativas, dispostas a fazer o jogo do partido e dos seus interesses, mas intervenientes de grande estatura moral e intelectual, escritoras, jornalistas, médicas, professoras, advogadas... Poucas foram as que toleraram a dolosa recusa do direito de voto nas sucessivas leis eleitorais da República. A maioria abandonou a "Liga", logo em 1911. Ficaram as que, como Maria Veleda, eram verdadeiramente mais "republicanas do que feministas", e colocavam, estrategicamente, o esforço de educação cívica das mulheres antes da concessão de direitos políticos. As sufragistas, sem nunca enjeitarem os seus ideais republicanos, multiplicaram associações independentes e ligadas a movimentos internacionais, como foi o caso da Associação de Propaganda Feminista de Ana de Castro Osório (1911) e do Conselho Nacional da Mulher Portuguesa, por muitos anos liderado por Adelaide Cabete, e que viria a ter, como última presidente, nos anos 40, Maria Lamas.
A prioridade do movimento sufragista está bem expressa no grito de revolta de Ana de Castro Osório: "Se uma República nos expulsa das suas leis cívicas, não podemos considerar nossa a Pátria onde não temos direitos, onde não temos voz para protestar".
Nos seus turbulentos 16 anos de vida, a República perdeu-se pela incapacidade de agregar crescentemente os portugueses, de responder aos anseios democráticos das mulheres e de largos sectores das populações, que foram marginalizados num universo eleitoral cada vez mais reduzido e inferior ao que existiu na última fase da monarquia. Por medo de um voto popular, que não soube atrair, a República incumpriu as promessas de sufrágio universal, e não se tendo enraizado suficientemente, não pode resistir ao golpe militar de 1926, a que se seguiria uma longa ditadura.
As republicanas alcançaram, todavia, vitórias em domínios que consideravam, justamente, do maior relevo, como as novas leis da família, a lei do divórcio, a extensão da rede de ensino, a co-educação, o acesso das mulheres à função pública, a carreiras profissionais - reformas que transformaram a sociedade portuguesa, e que, apesar de muitos retrocessos, de alguma forma, resistiram durante a ditadura e o Estado Novo, levando ao acesso, limitado embora, ao voto e à política, ao ensino, à participação no mundo do trabalho, da cultura.
As mulheres não esmoreceram, prosseguiram o seu infindável combate cívico. O I Congresso feminista acontece quase em fim de regime, em 1924. O II Congresso realiza-se em 1928, já em plena ditadura. Quase duas décadas depois, em 1947, um outro grande evento dá a conhecer as mulheres da cultura, no país e no mundo - uma audaciosa iniciativa do CNMP, presidido pela grande intelectual, jornalista e escritora Maria Lamas, que hoje justamente, evocamos neste Encontro. A visibilidade e o êxito do “feminino” no campo do pensamento, da escrita, da livre expressão, foram vistos como realidades verdadeiramente subversivas e, por isso, intoleráveis para o regime. O CNMP foi extinto e Maria Lamas perseguida.
Podemos assim dizer que um ciclo se fecha e uma época incomparável termina no rasto do sucesso de um último congresso...

II - CONGRESSISMO E POLÍTICAS DE GÉNERO PARA A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA (em revisão)

Restaurada a democracia, é também no cenário do “congressismo” que, em 1985, as portuguesas da Diáspora se reúnem, pela primeira vez, com o propósito de criarem as condições para o exercício pleno da sua cidadania no interior das comunidades portuguesas. Não podemos, em rigor, dizer que a história se repetiu, mas o certo é que a organização do "1º Encontro Mundial de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo” coube, também, aos políticos - não aos da oposição, mas aos do Governo - tendo, neste caso, a solicitação partido das próprias mulheres, através de uma recomendação do Conselho das Comunidades Portuguesas, na reunião Regional da América do Norte, na cidade de Danbury, em 1984.
Não havia conhecimento de organização semelhante em qualquer outro país de emigração, pelo que o governo português se converteu em pioneiro e viu a UNESCO patrocinar, oficialmente, essa sua primeira grande medida de uma política de género no domínio da Diáspora.
Podemos afirmá-lo, olhando as leis e as práticas do passado, porque, até 1974, as medidas especialmente destinadas às mulheres foram sempre, discriminatórias, procurando restringir o seu direito de emigrar, e até de acompanhar os maridos, evitando a saída de famílias inteiras ou a sua reunificação no estrangeiro (por se temer que facilitasse a integração nas terras de acolhimento). Traduzindo o sentir comum dos políticos do seu tempo, Afonso Costa considera o exôdo das mulheres "uma degenerescência do fenómeno migratório".(4) Ou seja, considerava que a emigração era, ou devia ser, “só para homens”! Não que estes não vissem, também, em determinadas épocas ou circunstâncias, cerceado o direito à livre circulação. A liberdade de emigrar é uma das liberdades que floresceu com a revolução de 1974, e que veio a ser expressamente consagrada na Constituição de 1976, assim como a plena igualdade entre os sexos. Todavia, a consagração da igualdade formal entre mulheres e homens, converteu-se, no espaço universal da Diáspora, em pretexto para ignorar as especificidades da situação das mulheres, continuando a emigração portuguesa a ser padronizada no masculino. Enquanto dentro do País foram criados programas de combate às discriminações que, de facto, resistiam à proclamação formal do princípio da igualdade, nada de semelhante aconteceu fora das fronteiras geográficas. As mulheres residentes no estrangeiro não estavam no centro das preocupações de iniciativas e de planos traçados por sucessivos governos e executados por vários departamentos e, em especial, pelas comissões para a igualdade - cuja designação foi variando ao longo dos anos ou não o estavam, pelo menos, de uma forma continuada e sistemática.
Ora, como é, nos nossos dias, amplamente reconhecido (e começou a sê-lo desde a abordagem do tema no Encontro Mundial de 1985) tornou-se, em regra, mais fácil às emigrantes afirmarem o seu estatuto de igualdade nas sociedades de acolhimento do que no âmbito das comunidades portuguesas. No movimento associativo das comunidades o seu papel, muito importante embora, reconduzia -se - e ainda, frequentemente, se reconduz - aos estereótipos tradicionais de divisão de trabalho, em função do sexo. Um trabalho invisível, de bastidores, de preparação dos eventos, dos programas culturais, da decoração e arranjo das salas, na cozinha, na retaguarda actuante... Completamente arredadas do acesso a cargos directivos excepto, evidentemente, no associativismo feminino – uma raridade, salvo na Califórnia...
Em consequência disso, ficaram também de fora do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), quando ele foi criado, como órgão consultivo do Governo, em 1980 -justamente porque era composto por dirigentes associativos e por jornalistas (3). A ausência feminina decorria da sua marginalização no movimento associativo, espelhava, fielmente, uma realidade. Aliás, foi, inicialmente, na "quota" dos jornalistas que surgiram as primeiras mulheres - caso de Custódia Domingues, de França, que era o único nome feminino na primeira reunião do CCP em 1981. E foi, precisamente, uma outra jornalista, a Conselheira das Comunidades Maria Alice Ribeiro (directora de um grande semanário de Toronto), que apresentou, em Danbury, a recomendação para a realização de um congresso mundial de mulheres da Diáspora, logo ali aprovada consensualmente. (4)
A Secretária de Estado da Emigração, que era eu mesma, limitou-se a dar rápido cumprimento a essa recomendação. As mulheres fizeram o resto… (5) Foi, por todas as razões, um Encontro memorável – antes de mais, pela qualidade dos debates, das contribuições. As participantes não falaram, apenas dos seus próprios problemas. Na escolha e tratamento de temas, no modo de historiar o passado e olhar o presente, nas recomendações para a mudança de um "estado de coisas", colocaram a tónica em dois grandes objectivos indissociáveis: o de serem consultadas sobre a realidade global das comunidades e o seu futuro, tal como o viam e queriam legitimamente influenciar; o de repensarem o seu próprio papel na família, na vida colectiva, no trabalho profissional e no associativismo, a fim de passarem à execução de projectos de mudança.
Tal como as feminista, um século antes, punham o acento na ideia de cidadania, de serviço cívico, privilegiavam o companheirismo com os homens, seus aliados. E mostravam, também, um elevado nível intelectual, eram jornalistas, escritoras, profissionais de prestígio, líderes de associações.
A chamada ao0 Encontro de mulheres do mundo associativo e dos media, tal como acontecia no CCP, é mais um indício de que este órgão consultivo foi o paradigma para a audição das mulheres. Contaram, aliás, com os mesmos interlocutores, membros do governo da República e dos governos regionais dos Açores e da Madeira. E, ainda, com personalidades da vida política e cultural do País, num acontecimento que deixou marcas e influenciou o futuro. Porém, nos anos que se seguiram, a estrutura internacional autónoma para que apontavam, não viria a formar-se – por falta da liderança, devida, certamente, à dispersão, à distância, às dificuldades de contacto entre todas… (6). Só em 1994, algumas das participantes do Encontro retomariam esse projecto, com a criação, em Lisboa, da “Mulher Migrante – Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade”, aberta a membros de ambos os sexos, e reclamariam a herança, para a continuar, com a intenção de associar a "sociedade civil" e o Estado na prossecução das tarefas de promover a participação cidadã das mulheres no contexto da expatriação. Só assim se explica que uma pequena associação se tenha convertido desde então, e até hoje, em parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género neste domínio, nomeadamente das que passam pelo "congressismo". A Associação tem colaborado, em especial, com os departamentos responsáveis pelas políticas da igualdade e com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, em sucessivos governos. (7) Uma prova de que, neste campo, a convergência e a sequência de políticas tem sido alcançada - asserção que não poderá generalizar-se, evidentemente, ao conjunto das políticas para a emigração.
Ainda que sem uma base institucional, o modo de colaboração entre o Estado e a “Mulher Migrante” - agregando associações locais, que têm co- participado no “congressismo para a igualdade de género” - parece, de algum modo, inspirar-se no modelo do CCP originário, não o actual, mas o que tinha raízes associativas, era uma "plataforma de diálogo" entre o governo e instituições ou personalidades das comunidades do estrangeiro, e, como vimos, impulsionou o 1º Encontro de Mulheres da Diáspora. É, sobretudo, o carácter recorrente, e não esporádico, da consulta ou audição das mulheres, que justifica a comparação. De facto, ao Encontro Mundial de Espinho, que reuniu mais de 300 participantes dos cinco continentes, e em que procurou fazer-se o balanço de uma década (1985/1995), seguiram-se inúmeros seminários e colóquios realizados no País e no estrangeiro, e, entre 2005 e 2009, os "Encontros Para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens".(8)
Em 2005, ao perfazer a 2ª década após o Encontro de Viana, a "Mulher Migrante" apresentou ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas António Braga uma proposta de realização de "Encontros" nas maiores comunidades da Diáspora, inseridas numa estratégia de mobilização para a intervenção cívica. O primeiro foi na América do Sul, em Buenos Aires (2005), depois foi a vez da Europa, (Estocolmo, 2006), do Canadá, (Toronto, 2007), da África do Sul (Joanesburgo, 2008) e dos EUA (Berkeley, 2008). Em todos esses "congressos" estiveram presentes membros do Governo - ou o SECP ou o Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros.
Mais uma vez podemos falar de um caminho próprio, sem precedente em qualquer outro país, no que à fórmula respeita, ainda que haja, certamente, muito em comum, em matéria de situações de facto, de aspirações de mudança, de metas e metodologias para as atingir, no aspecto dos factos e do Direito.
Olhando o universo jurídico, poderemos dizer que, em Portugal, a primeira medida de promoção da igualdade de género na emigração foi a aplicação do princípio da paridade na eleição para o CCP - que, por sinal, foi anunciada pelo Secretário de Estado Jorge Lacão na Conferência para a Igualdade, co-organizada pela "Mulher Migrante" em Toronto.(9) As listas para o CCP viriam, de facto, no ano de 2008, a assegurar, em observância da lei, a inclusão de um terço de mulheres. E como os actos eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias ocorreram no ano seguinte, acabou por constituir como que um "ensaio geral" do sistema de quotas -e bem sucedido, pois redundou no aumento previsível, do número e percentagem de conselheiras e, também, na sua ascensão (minimalista ainda) ao Conselho Permanente - Teresa Heimans, participante neste Encontro é a primeira a integrar essa cúpula directiva.
A presença feminina, globalmente, no CCP, nas diversas Comissões e na instância de coordenação, é quantificável, com todo o rigor (sabendo-se que está ainda longe de uma verdadeira igualdade), mas a importância real que terá no maior equilíbrio de participação de ambos os sexos na vida das comunidades do estrangeiro vai depender, directamente, do uso que as eleitas farão da sua capacidade de influenciar os processos de funcionamento e de decisão do "Conselho", e, indirectamente, do papel que venha a ser o desta instituição - que tem tido, como é sabido, um percurso acidentado e irregular, por vezes, devido ao distanciamento interposto pelos próprios governos, sem por isso deixar de ser o único forum de representação universal dos emigrantes portugueses.
Uma nova medida de salientar, neste domínio, é a Resolução nº32/2010 de 19 de Março "Sobre a problemática da mulher emigrante", que contém uma série de recomendações ao Governo. a primeira das quais é a criação de um programa "com o objectivo de definir um conjunto de medidas destinadas ao desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas residentes no estrangeiro."
Muitas das acções para que aponta esse programa correspondem a conclusões ou recomendações dos "Encontros para a cidadania, tal como foram formuladas pelas suas participantes.
A "Resolução" junta assim um lado muito realista e pragmático ao seu lado mais simbólico - ou seja, o ter constituído, historicamente, na Assembleia da República, uma primeira abordagem das questões da emigração feminina e das soluções a encontrar para promover a igualdade entre os sexos, que é uma obrigação imposta ao Estado pelo art. 109º da Constituição, que não pode ser equacionada apenas no território nacional.
José Cesário foi, em 2010, como deputado, o autor, o primeiro proponente da Resolução, dirigindo ao Governo um conjunto de recomendações que se mostra, naturalmente, agora, pronto a acatar, como Secretário de Estado.
É, pois, com base neste instrumento jurídico que um novo ciclo se inicia, sem rupturas com o passado - e a Associação Mulher Migrante disponibiliza-se, uma vez mais, para prosseguir objectivos em que há interesse mútuo na colaboração entre serviços públicos e organizações privadas.
O Encontro Mundial da Maia, em 2011, é nesta perspectiva, um ponto de partida numa nova etapa de um percurso há muito começado e sem fim à vista.
E a Resolução nº 32/2010, ao contrário do que acontece com tantos dos normativos programáticos, será para ser vivida e para se tornar o instrumento da efectivação de políticas de emigração, com a componente de género.


Notas

(1) A participação de mulheres, que saíam do mais completo anonimato, para serem aclamadas nas tribunas dos comícios, não aconteceu só na capital, mas em muitas terras de província. Fina d'Armada coligiu dados referentes a 33 concelhos, com abundante informação sobre os nomes dessas revolucionárias, muitas delas jovens, e sobre o seu parentesco com activistas republicanos - a revelar que existiam, frequentemente, laços de família entre elas e eles. Família de sangue e família ideológica, in "Republicanas quase Desconhecidas", Temas e Debates, Círculo dos Leitores, Maia 2011.
(2) Sobre uma primeira conversa entre António José de Almeida e Ana da Castro Osório, com vista à criação da "Liga", vd Zília Osório de Castro in "Mulheres na República - Percursos, Conquistas e Derrotas", pag. 105
(3) João Esteves dá-nos a cronologia dessas cisões in "Mulheres e Republicanismo, 1908-1928", pag. 9 e sgs.
(4) in "A Emigração", Imprensa Nacional, 1913, pag 182
(5) O CCP foi instituído pelo Decreto-Lei nº 373/80 de 12 de Setembro, como uma "plataforma de diálogo" ente o governo e as organizações do movimento associativo, assumindo no programa do VI Governo Constitucional, no discurso político, e, a meu ver, também de facto, um lugar de grande relevo, como porta voz das comunidades e co-participante nas políticas de emigração. Essa proeminência tornava especialmente grave e lamentável a exclusão da voz das mulheres.
(6) A proposta formalizada por Maria Alice Ribeiro começou a ser equacionada nos convívios informais da reunião do Conselho Regional, onde estava a mulher de um dos conselheiros, Natália Dutra, ela própria, dirigente de uma Irmandade da Califórnia. A ambas, Natália a Maria Alice, se pode atribuir a autoria da ideia.
(7) Foram 36 as representantes das suas comunidades no "Encontro de Viana":
Alice Vieira (Venezuela); Angela Giglitto (EUA -Califórnia); Aurora Vackier (França); Barbara Angeja (EUA-Califórnia);Benvinda Maria (Brasil); Berta Madeira (EUA-Califórnia); Claudia Rios (EUA-Leste); Custódia Domingues (França); Debora Morais (Canadá); Dolores Nunes-Lowry (EUA-Califórnia);Fernanda Claudio (Canadá); Helena Guerreiro-Klinowsky (Canadá); Helena Amaral (EUA-Leste); Heroína de Pina (Luxemburgo); Julieta Maia (Canadá); Laura Bulger (Canadá); Manuela da Luz Chaplin (EUA-Leste); Manuela Faria (Austrália); Maria Adelaide Vaz (Canadá); Amélia Afonso (Argentina); Mary Giglitto (EUA-Califórnia); Maria Antónia Anjos (Argentina); Maria do Céu Cunha (França); Eulália salgado (RAS); Maria Emília Pedreira (Brasil); Fernanda Gabriel (França); Maria da Graça dos Santos (França); Isabel Vieira (França); Maria José Brântuas (EUA-Califórnia); Juliana Resende (Venezuela): Leonor Xavier (Brasil); Lourdes Lara (Canadá); Edith Phillips (Inglaterra); Manuela Cavaleiro Miranda (França); Natália Dutra (EUA-Califórnia); Rosa Silveira (EUA-Califórnia).
(8) Nas Conclusões Gerais do "Encontro", diz-se no Ponto 8: "Foi decidido formar uma associação entre as participantes do encontro, aberta, no entanto, a outras mulheres portuguesas ou de origem portuguesa residentes no estrangeiro e às que em Portugal se interessam pela matéria". in "1º Encontro Portuguesas Migrantes no Associativismo e no Jornalismo", Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Centro de Estudos, Porto, 1986, pag 138
(9) vd Rita Gomes in "Mulher Migrante em Congresso" coord Maria Manuela Aguiar e Maria Teresa Aguiar, edição Mulher Migrante, Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, VN Gaia, 2009, pag 99 e sgs..
(10) Comunicações sobre os "Encontros para a Cidadania" foram apresentadas por participantes no Encontro de espinho, em Março de 2009 e estão publicadas in "Cidadãs da Diáspora - Encontro em Espinho", coord Maria Manuela Aguiar, Edição Mulher Migrante - Associação de estudo, Cooperação e Solidariedade, VN Gaia, 2009
(11) O mesmo princípio da paridade adoptado na formação de listas para as eleições legislativas e autárquicas é imposto no nº 4 do artº11º e na alínea a) do nº1 do art. 37º da Lei nº 66-A/2007.

Bibliografia

Fina d'Armada, "Republicanas quase desconhecidas", Temas e Debates, Círculo de Leitores, Maia, 2011
"Mulheres na República - Percursos, Conquistas e Derrotas", coord Zília Osório de Castro, João Esteves e Natividade Monteiro. Edições Colibri, Lisboa, 2011
João Esteves, "Mulheres e Republicanismo (1908-1928)", Colecção Fio de Ariana, CIG, Lisboa, 2008
"1ª Encontro Portuguesas Migrantes no associativismo e no Jornalismo" Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Centro de Estudos, Porto, 1986
"Encontro Mundial de Mulheres Migrantes - Gerações em Diálogo" Edição Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, Lisboa, 1996
"Encontro em Espinho - Cidadãs da Diáspora" coord Maria Manuela Aguiar, Edição Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, V N Gaia, 2009
Mulher Migrante - o congresso on line", coord Maria Manuela Aguiar e Maria Teresa Aguiar, Edição Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, V N Gaia, 2009

sábado, 21 de janeiro de 2012

Rosa Simas A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA

A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA:

DIVERSIDADE NUMA CULTURA COMUM

Rosa Neves Simas

Entre 2003 e 2008, tive o prazer de publicar A Mulher nos Açores e nas Comunidades, uma colectânea de 6 volumes contendo 100 artigos escritos por mulheres e homens de variadas idades, profissões e situações de vida, dando assim voz às diferentes experiências e perspectivas sobre a situação da mulher no arquipélago e nas comunidades dos Estados Unidos e do Canadá. Os artigos estão organizados de acordo com os seguintes tópicos: a mulher na sociedade, na educação, nos média, nas artes e tradições, nos assuntos legais e na saúde, com destaque para a mulher no mundo do trabalho.

Numa panorâmica da mulher açoriana na Califórnia, o que transparece é um retrato de diversidade no seio de uma cultura comum. O que surge é uma panóplia de formas diferentes de viver a experiência comum da açorianidade em terras da costa oeste dos Estados Unidos. A diversidade dos artigos sobre a mulher migrante na Califórnia pode ser apresentada em relação a variadas temáticas.

A Migração e a Língua

A emigração das ilhas para a Califórnia é centenária. Por isso, começo por voltar atrás no tempo, evocando uma mulher que emigrou nos anos 50 do século passado, altura em que ser imigrante nos Estados Unidos era considerado um entrave e uma origem étnica não-“americana” era vista como um handicap. Neste contexto, o sentimento de saudade era enorme e a ligação à família vital.

Emigração para a Califórnia nos anos 50 do século XX

~~~~~~

“Cadernos de uma mulher migrante: A língua e a procura do sentido da vida”

Volume III


Figura 1: Imagem da autora dos cadernos quando emigrou para a Califórnia.

Mom & Dad

Sexta, 28 Maio 1954 – Faz hoje um ano que chegámos à América, a casa da Maria. Recebi carta do José. Fala-me em vir cá para o ano… Principiei a sentir o bebé mexer.

Assim começa o artigo “Cadernos de uma mulher migrante: a língua e a procura do sentido da vida” (III: 555-574), um texto em que a autora, Helena, analisa o impacto da emigração na vida da sua mãe, uma mulher que encontrou consolo na escrita, para expressar os dilemas e as saudades e para combater o isolamento que sentia no ambiente estranho da América dos anos 50, época ultra-conservadora e avessa à migração. Escreve a filha desta mulher que emigrou em 1953 da ilha do Pico:

Contra tudo e todos, a minha mãe escrevia e guardava cadernos de diários. Caladamente persistente, escrevia quase todos os dias. Isto poderá não parecer notável, mas a verdade é que ela tinha apenas completado a antiga quarta classe nos Açores. Para além disso, ela era uma mulher migrante a viver isolada, em termos culturais e linguísticos, numa das vacarias típicas do Vale de San Joaquin na Califórnia. (555)

19540528alzira

Figura 2: Folhas dos cadernos de uma mulher migrante na Califórnia.


Como todas as pessoas que migram, esta mulher enfrentou a barreira de uma língua estrangeira, refugiando-se na escrita em português, como explica a filha, Helena, hoje mestre em linguística aplicada:

A língua, em qualquer das suas formas, evoca muita emoção numa pessoa imigrante. É muitas vezes uma lembrança dolorosa e constante da identidade que ficou atrás, e da separação que sentem do mundo lá fora, a falar através de um código desconhecido. A minha mãe refugiava-se na língua, com os seus pensamentos anotados no papel, para desvendar os hiatos da sua experiência entre dois mundos. (556)

Com o tempo, a filha vem a considerar esta experiência bilingue e bicultural como uma mais-valia, para si e para as irmãs. Hoje professora, a coordenar o ensino da língua inglesa em doze países do Médio Oriente, Helena observa: “A maior sensibilidade meta-linguística das crianças bilingues permite uma percepção precoce da vertente abstracta e simbólica das palavras” (561). Falando da mãe, diz:

Ao longo dos anos, a minha mãe foi aprendendo a comunicar à vontade na língua inglesa e, com o meu pai ao lado, tornou-se numa pessoa activa e respeitada na comunidade da Califórnia. As entradas nos diários foram mostrando mais auto-confiança e mais abertura ao exterior, ao mesmo tempo que documentavam o seu envolvimento social, mais do que o seu isolamento pessoal. (562-3)

Património e Tradições

Para combater a solidão da migração, e para participar em eventos sociais e cultivar as tradições das ilhas, a maioria das pessoas que emigra procura as associações e sociedades da comunidade. No artigo “A mulher portuguesa nas sociedades fraternais da Califórnia” (I: 149-172), Deolinda Adão, directora do Portuguese Studies Program da University of California, Berkeley, faz um esboço da história de cinco sociedades comunitárias da Califórnia, duas das quais – SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel) e UPPEC (União Portuguesa Protectora da Califórnia) – foram pioneiras porque, numa altura em que o associativismo era masculino, e continuou a sê-lo marcadamente até aos anos 70 do século passado, estas duas sociedades foram criadas por e para mulheres, há mais de um século.

SPRSI

Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel

~~~~~~

1889

SPRSI

Figura 3: Sigla da Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel.


Das muitas e variadas associações e sociedades que organizam eventos comunitários e mantêm as tradições açorianas na Califórnia, as que são conhecidas como Irmandade do Espírito Santo (IDES), ou Sociedade do Espírito Santo (SES) são notáveis. Existe uma, e por vezes várias, em cada comunidade, formando uma rede que atravessa o estado, de norte a sul. A primeira foi criada em 1861. Ao longo de 150 anos, chegou a haver 144 irmandades. Hoje, 99 mantêm-se em actividade, organizando celebrações em honra do Espírito Santo em todo o estado.

Desde 1861,

houve 144 irmandades do Espírito Santo na Califórnia.

~~~~~~

Presentemente,

99 destas irmandades continuam em actividade.

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Figura 4: Imagem da rainha e aias de uma festa do Espírito Santo na Califórnia.


No artigo “As rainhas das festas na Califórnia: a inversão e reversão do ritual” (II: 281-316), a antropóloga Mari Lyn Salvador descreve os rituais que caracterizam esta tradição secular, dizendo: “As rainhas participam em festividades que derivam do ciclo ritual português associado a Santa Isabel, Rainha de Portugal de 1261 a 1336” (282). Numa perspectiva histórica e antropológica, Mari Lyn descreve “uma das formas encontradas pelos imigrantes para combinar elementos expressivos do país de acolhimento, com os elementos da sua terra natal que consideram importantes para a manutenção da sua identidade cultural” (283).

De uma forma sintética, Mari Lyn explica como “uma rainha do século XIII que oferecia as suas jóias para dar de comer aos pobres e coroava um homem pobre com a sua própria coroa” foi transformada nas rainhas de hoje, ricamente trajadas com vestidos, capas e tiaras de luxo. Tal metamorfose é exemplo claro do processo de recriação e adaptação das tradições do Velho Mundo, transplantadas no Novo Mundo. Simultaneamente, é um exemplo notável da intervenção activa da mulher na transmissão do património cultural, entre gerações.

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Caixa de texto: Figura 5: Imagem de uma mãe e a filha, rainha da festa de Espírito Santo.


A Expressão Artística

Como migrantes, as/os açor-descendentes vivem a sua herança cultural de formas variadíssimas, com características pessoais e idiossincráticas. A diversidade de técnicas e temáticas nas obras de duas artistas plásticas da Califórnia retrata bem esta realidade. A mais jovem artista, Marlene Angeja, que vive na área de San Francisco, diz em “Duas paisagens: a visão de uma artista luso-americana” (II: 421-438):

Aquilo que une as várias formas que as minhas obras assumem é uma força subjacente, que é muitas vezes inconsciente e instintiva. Essa força motora parece estar relacionada com duas coisas. Uma é a paisagem das Ilhas dos Açores. A outra é o meu interesse nas histórias, lendas e mitologias do povo português. (422)

Caixa de texto: Figura 6: Imagem da obra “Duas paisagens” de Marlene Angeja.img025

A obra “Duas Paisagens” conjuga a tradição da vindima nas ilhas com a vivência do meio rural da Califórnia onde Marlene cresceu. Outro exemplo do seu trabalho é a própria capa da antologia A Mulher nos Açores e nas Comunidades, que retrata a mãe desta artista, hoje mestre em Belas Artes e professora na California State University, San José. Referindo-se a outra obra, Marlene desvenda aspectos da sua experiência como descendente de emigrantes oriundos dos Açores:

Ao Aeroporto é um desenho mixed media de uma menina com o dedo na boca… Ao longo do lado esquerdo da tela lemos as palavras “eu fui ao aeroporto, tu foste ao aeroporto, você foi ao aeroporto…” Esta conjugação do verbo “ir” em português evoca a aquisição de uma língua estrangeira. Alude, também, ao medo e ao encanto que senti na primeira viagem às ilhas e ao sentido de perda que senti quando partimos. Um aeroporto é um lugar de chegadas e partidas. Como os portos de onde os antigos marinheiros partiram para as Descobertas, é um lugar marcado pela saudade. (423)

A segunda artista é Maxine Olson, que vive no sul do Vale de San Joaquin e tem um largo currículo artístico. Em vez de abstracta, como a da Marlene, a obra de Maxine é claramente figurativa, justapondo imagens de pessoas que marcaram a sua vida numa tentativa de recriar na tela as narrativas de uma açor-descendente. O artigo de Maxine tem por título “Um retrato da minha mãe: o que ficou por dizer” (Volume II: 409-420) e conta a história da sua viagem aos Açores, em busca de respostas sobre as suas antepassadas. Maxine acaba o texto dizendo:

As tentativas que tenho feito para descobrir os segredos da vida de minha mãe, e da mãe dela, têm-me levado a perceber melhor as forças que controlam a minha vida. Se vamos aprender com o passado, e ser perdoadas pelas nossas decisões e omissões no presente, não podemos esquecer as estórias e as ofensas, as penas e as dificuldades pelas quais as nossas progenitoras passaram na sua demanda pelo amor e pelo afecto. (414)

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Caixa de texto: Figura 7: Imagem da obra “Retrato da Minha Mãe” da artista Maxine Olson.


A Saúde e o Envelhecimento

A construção da identidade migrante depende muito das relações em família e da postura perante o passado e a vida presente dos familiares. Nesta demanda, o desafio é ainda maior quando o envelhecimento das pessoas que nos são queridas bate à porta. Efectivamente, neste contexto, como em tantos outros, as mulheres têm maior tendência para assumir o papel de cuidadoras, dentro da família e da própria comunidade. Esta dinâmica social é a génese do artigo “POSSO: um centro comunitário da Califórnia” (IV: 975-982), da autoria de Vicky Machado. Como co-fundadora da POSSO e elemento activo da comunidade, Vicky descreve a origem deste centro comunitário, há mais de três décadas:

A Portuguese Organization for Social Services and Opportunities (POSSO) é uma ONG e foi criada pela comunidade portuguesa de San José para auxiliar imigrantes na sua integração social e adaptação ao país de acolhimento. Foi fundada em 1976 para assegurar à comunidade portuguesa pleno acesso aos serviços sociais e benefícios governamentais… Éramos formados e estávamos inspirados pela onda de orgulho étnico que prevalecia na América de então, e pela calorosa lealdade que sentíamos pelos nossos pais e avós imigrantes… Para o nome, escolhemos o acrónimo POSSO, precisamente para combater o fatalismo da nossa comunidade idosa, que se sentia fragilizada para conseguir a integração social de que precisavam para lhes garantir a sua quota-parte do sonho americano. (975)

Health Fair at POSSO

Figura 8: Imagem da dinâmica social na sede da organização POSSO.


Ao descrever os muitos programas e serviços da POSSO, Vicky sublinha a importância desta organização para a comunidade idosa, “um grupo isolado porque as/os familiares tinham e têm o seu tempo muito ocupado, trabalhando fora de casa para conseguir a sobrevivência económica da família” (976). Ao terminar, Vicky destaca a intervenção feminina neste projecto comunitário:

Desde o princípio, as mulheres têm sido fundamentais para a POSSO, como fundadoras, chefes, staff e voluntárias. Numa perspectiva tradicional, a POSSO desempenha, hoje, as “tarefas da mulher” porque presta cuidados e apoio às pessoas idosas e outros familiares vulneráveis, enquanto as mulheres, que cumpririam tais tarefas, trabalham fora de casa, contribuindo assim para o sustento da família e para a sua realização profissional. Vista nesta perspectiva, a POSSO deve o seu sucesso e longevidade à feliz conjugação de valores tradicionais e actuais. (978)

Educação e Empresariado

Tradicionalmente, a mulher açoriana, dentro e fora das ilhas, foi sujeita a muitas limitações e condicionalismos sociais e culturais. No contexto actual, muito mudou. Na educação, por exemplo, verifica-se uma acentuada presença da mulher no ensino superior. Elmano Costa descreve esta situação no artigo “A feminização do ensino superior numa comunidade rural da Califórnia” (III: 575-620). Este educador faz um esboço da comunidade rural, situada no norte do Vale de San Joaquin, ao mesmo tempo que descreve a evolução dos valores e olhares da mesma, no que concerne à educação, ao trabalho e à situação da mulher. Ao apresentar os resultados do seu estudo, este educador e professor na University of California, Stanislaus, faz a seguinte síntese:

As mulheres luso-californianas gozam de oportunidades que as suas mães nunca tiveram. Podem seguir uma carreira; casar quando querem e não porque precisam de alguém que as sustente; escolher ficar solteiras; ou optar por serem domésticas. E podem regressar à vacaria, para assumir a gerência do negócio, mas como gerentes diplomadas. (583)

Elmano termina o seu texto com este desejo: “E oxalá que elas possam dar aos seus filhos homens a mesma motivação que as levou a frequentar e a completar, com êxito, os seus cursos superiores, para que eles, no futuro, possam também usufruir dos benefícios de um diploma universitário” (584).

A mulher açor-californiana tem-se aventurado, ela própria, em outros domínios, incluindo o mundo empresarial. O mesmo autor debruça-se sobre este tema no artigo “Empresariado no feminino: novos horizontes para a mulher luso-americana” (VI: 1429-1456). Ao analisar a crescente participação da mulher como empresária no mundo dos negócios, Elmano observa: “Estas mulheres são, sem dúvida, pioneiras, pois conseguiram não só superar a discriminação de género, como também ultrapassaram as dificuldades que imigrantes, da primeira e da segunda gerações, tiveram de enfrentar para se integrarem na nova cultura do país de acolhimento e no mundo competitivo do trabalho e do empresariado” (1429).

Efectivamente, visto que a relação de qualquer imigrante com a sua comunidade é multifacetada e, por vezes, muito complicada, estas empresárias californianas tiveram de enfrentar e ultrapassar muitos obstáculos e desafios. Numa óptica negativa, a descriminação de género teima em persistir e são muitas as dificuldades da integração numa outra cultura. Do lado positivo, verifica-se uma relação de grande proximidade e envolvência com a comunidade, fazendo com que estas mulheres destaquem o desejo e o prazer que sentem ao contribuírem para o bem-estar da mesma. Segundo o autor: “As empresárias luso-americanas gozam de outra característica que não vem na literatura. Quase todas sublinham a importância que tem nas suas vidas o contributo que podem prestar à comunidade luso-americana” (1439).

A Indústria de Lacticínios da Califórnia

Em termos económicos, ao longo de décadas, o grande trunfo da presença açoriana na Califórnia tem estado na indústria de lacticínios, hoje um negócio de milhões que está predominantemente nas mãos deste grupo da diáspora. À primeira vista, estas mãos parecem ser só masculinas. Contudo, um olhar mais cuidado revela outra realidade, como demonstra Alvin Graves em “Empresárias invisíveis: a mulher açor-americana nos lacticínios da Califórnia” (VI: 1487-1510). Este estudioso da presença açor-americana nos lacticínios californianos aponta para duas épocas:

…o período pré-2ª guerra mundial, quando dominava a cultura tradicional e a produção leiteira era um modo de vida, e o período pós- guerra, quando as normas culturais foram-se alterando e a produção leiteira do estado se transformou no que se chama agrobusiness. A mulher está bem presente em ambos os períodos, mas de uma forma invisível. (1488)

Figura 9: A mulher migrante na indústria de lacticínios da Califórnia. *

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Embora tenham sempre contribuído para os trabalhos da lavoura, as mulheres, actualmente com níveis mais elevados de escolarização, estão mais bem preparadas para lidar com o novo mundo do agrobusiness, em particular com a gestão financeira e a criação de bezerros. Alvin explica:

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

…são elas que fizeram cursos superiores; especializaram-se em gestão de empresas, finanças, contabilidade ou direito, tendo assim uma formação essencial que o marido raramente possui. Como a geração anterior, muitas continuam a gerir o negócio. Outras fazem marketing e formação do consumidor, e tomam parte nos lobbies do sector e na promoção de legislação favorável ao negócio leiteiro. (1495)

Figura 10: Imagem evocativa da presença açoriana na indústria leiteira californiana. *

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Formada em direito, Deanne Ferreira é uma açor-descendente que lida de perto com a legislação referente aos lacticínios, especialmente vista à luz das questões ambientais. No texto “Uma mulher e o ambiente: os desafios de sempre (VI: 1643-1658), Deanne explica:

Sendo recente, a legislação ambiental é ainda considerada um nicho do mercado no mundo da advocacia. É uma área dominada por homens, porque é normalmente necessário ter formação científica, e são os homens, mais do que as mulheres, que fazem a sua formação nas ciências exactas. (1645)

Tendo referido a participação dos seus antepassados na indústria leiteira do estado, Deanne conjuga a sua profissão com as suas raízes açóricas quando, ao referir o seu futuro profissional, descreve as suas intenções e motivações da seguinte forma:

Estou a estudar os efeitos da emissão de gás metano pelas vacas leiteiras. Várias vacarias estão a utilizar equipamento próprio para captar o gás metano do estrume (biomassa) de vaca, para depois convertê-lo em energia renovável. Os benefícios são notáveis. É minha intenção auxiliar os produtores de lacticínios da Califórnia a lidar com o labirinto de regras e leis ambientais que existem actualmente. Quero contribuir para que a herança dos nossos antepassados na indústria leiteira deste estado permaneça nas comunidades de descendentes de imigrantes dos Açores, um povo cujo esforço e conhecimento ultrapassaram tudo e todos. (1648-9)

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

Redefinindo a Identidade Cultural

Demonstrando, assim, uma grande sensibilidade para com a sua herança cultural e o reconhecimento inequívico das capacidades dos seus antepassados, Deanne Ferreira é uma jovem açor-descendente que, no contexto actual, está a redefinir a sua identidade cultural à luz dos novos paradigmas da contemporaneidade. Outro exemplo é Márcia Dinis, que se apresenta como “O ser jovem e luso-americana na era da globalização” (I: 181-190), descrevendo os afazers do seu dia-a-dia e os parâmetros da sua identidade da seguinte forma:

Levanto-me e tento fazer um jogging matinal todas as manhãs. Vou às aulas, faço umas horas de trabalho part-time, e às vezes jogo futebol ao serão. Depois, vou para casa e falo ao telefone com a minha mãe. Estas conversas são a melhor parte do meu dia porque me acalmam e me dão a oportunidade de falar a minha língua materna, o português… Na faculdade, escolhi o curso de Estudos Globais. Se perceber melhor a nossa sociedade global, talvez possa ajudar a minimizar os malefícios da mesma, enquanto ajudo a promover os benefícios. Ao mesmo tempo, estou a especializar-me em Português. Estudo a língua, a literatura e a cultura. Sou luso-americana, sou mulher e tenho 21 anos. (181)

Mais à frente no seu artigo, a jovem Márcia faz o seguinte o balanço do seu mundo e da sua identidade pessoal e cultural, afirmando:

Sou uma pessoa privilegiada. Acredito plenamente que esta era da globalização tem levado os jovens a sentir orgulho pela sua herança cultural… A bandeira portuguesa por cima da minha cama, a tatuagem do açor nas minhas costas, as peças de louça tradicional penduradas na parede do meu apartamento lembram-me que estou acima da média, que sou especial porque sou portuguesa. (182)

Carol Gregory é outra jovem de ascendência açoriana na Califórnia que está a desbravar o seu próprio caminho e a forjar o seu retrato individual, em relação estreita com o passado colectivo da comunidade californiana. No artigo “A geografia da minha identidade cultural” (I: 191-212), Carol traça as seguintes coordenadas identitárias:

Como geógrafa, estou a estudar a dimensão geográfica e a localização específica dos marcos da cultura lusa na Califórnia. Refiro-me a salões, igrejas e outros edifícios, e a nomes de ruas, zonas comerciais, bairros e parques. A riqueza deste património é o tema da minha tese de doutoramento, onde faço um inventário da quantidade e localização destes marcos historico-geográficos, desta forma ilustrando e descrevendo o impacto da nossa presença na paisagem cultural deste estado. (195)

Tendo colaborado com a Portuguese Historical and Cultural Society (PHCS) de Sacramento, a autora afirma que o contributo de Portugal foi fundamental para a história e para “o conhecimento geográfico do Mundo” (191).

Para concluir, o exemplo de uma jovem que está a redefinir a sua identidade e herança cultural ao ritmo da contemporaneidade. Chama-se Felicia Viator e é autora do artigo “A Neta do hip-hop: uma luso-americana no mundo da música contemporânea” (II: 381-392). Esta jovem, que vive na cidade de San Francisco, é DJ e é conhecida pelo apelido Neta. Como mulher, Felícia considera-se “quase um oximoro na cena hip-hop” e explica que, desde o seu início, nos anos 70, a cultura hip-hop tem seguido o modelo masculino. Eis a surpresa e a satisfação do público que assiste às suas actuações. Descendente, pelo lado materno, de emigrantes do Pico, esta jovem explica que escolheu o nome Neta em memória da avó. De visita à ilha ancestral, Felicia descreve os seus sentimentos e as recordações da avó, redefinindo-se como pessoa à luz desta herança vital e marcante, quando escreve:

De visita ao Pico, deixei-me levar pelo mundo da minha e comecei a perceber a dor que sentia. Procurava compreender como ela e este mundo tinham sido, sempre, uma parte vital de quem eu sou. Logo de seguida, a alcunha de DJ que tinha escolhido, o nome pelo qual sou conhecida no mundo do hip-hop de toda a área de San Francisco, cristalizou-se. Subitamente, o meu espírito elevou-se e senti simultaneamente humildade e ousadia. Parti do Pico e dos Açores sabendo: “I am Neta.” (385)

“I am Neta

PicoIsland-Azores

Figura 11: Imagem da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.


BIBLIOGRAFIA

GOULART, T., coordenação (2003). The Holy Ghost Festas: A Historical Perspective of the Portuguese in California. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

GRAVES, A., (2004). The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2003). A Mulher nos Açores e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes I, II, III e IV. Ponta Delgada: Empresa Gráfica Açoriana.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2008). A Mulher e o Trabalho nos Açores e nas Comunidades / Women and Work in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes V e VI. Ponta Delgada: UMAR-Açores.A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA:

DIVERSIDADE NUMA CULTURA COMUM

Rosa Neves Simas

Entre 2003 e 2008, tive o prazer de publicar A Mulher nos Açores e nas Comunidades, uma colectânea de 6 volumes contendo 100 artigos escritos por mulheres e homens de variadas idades, profissões e situações de vida, dando assim voz às diferentes experiências e perspectivas sobre a situação da mulher no arquipélago e nas comunidades dos Estados Unidos e do Canadá. Os artigos estão organizados de acordo com os seguintes tópicos: a mulher na sociedade, na educação, nos média, nas artes e tradições, nos assuntos legais e na saúde, com destaque para a mulher no mundo do trabalho.

Numa panorâmica da mulher açoriana na Califórnia, o que transparece é um retrato de diversidade no seio de uma cultura comum. O que surge é uma panóplia de formas diferentes de viver a experiência comum da açorianidade em terras da costa oeste dos Estados Unidos. A diversidade dos artigos sobre a mulher migrante na Califórnia pode ser apresentada em relação a variadas temáticas.

A Migração e a Língua

A emigração das ilhas para a Califórnia é centenária. Por isso, começo por voltar atrás no tempo, evocando uma mulher que emigrou nos anos 50 do século passado, altura em que ser imigrante nos Estados Unidos era considerado um entrave e uma origem étnica não-“americana” era vista como um handicap. Neste contexto, o sentimento de saudade era enorme e a ligação à família vital.

Emigração para a Califórnia nos anos 50 do século XX

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“Cadernos de uma mulher migrante: A língua e a procura do sentido da vida”

Volume III


Figura 1: Imagem da autora dos cadernos quando emigrou para a Califórnia.

Mom & Dad

Sexta, 28 Maio 1954 – Faz hoje um ano que chegámos à América, a casa da Maria. Recebi carta do José. Fala-me em vir cá para o ano… Principiei a sentir o bebé mexer.

Assim começa o artigo “Cadernos de uma mulher migrante: a língua e a procura do sentido da vida” (III: 555-574), um texto em que a autora, Helena, analisa o impacto da emigração na vida da sua mãe, uma mulher que encontrou consolo na escrita, para expressar os dilemas e as saudades e para combater o isolamento que sentia no ambiente estranho da América dos anos 50, época ultra-conservadora e avessa à migração. Escreve a filha desta mulher que emigrou em 1953 da ilha do Pico:

Contra tudo e todos, a minha mãe escrevia e guardava cadernos de diários. Caladamente persistente, escrevia quase todos os dias. Isto poderá não parecer notável, mas a verdade é que ela tinha apenas completado a antiga quarta classe nos Açores. Para além disso, ela era uma mulher migrante a viver isolada, em termos culturais e linguísticos, numa das vacarias típicas do Vale de San Joaquin na Califórnia. (555)

19540528alzira

Figura 2: Folhas dos cadernos de uma mulher migrante na Califórnia.


Como todas as pessoas que migram, esta mulher enfrentou a barreira de uma língua estrangeira, refugiando-se na escrita em português, como explica a filha, Helena, hoje mestre em linguística aplicada:

A língua, em qualquer das suas formas, evoca muita emoção numa pessoa imigrante. É muitas vezes uma lembrança dolorosa e constante da identidade que ficou atrás, e da separação que sentem do mundo lá fora, a falar através de um código desconhecido. A minha mãe refugiava-se na língua, com os seus pensamentos anotados no papel, para desvendar os hiatos da sua experiência entre dois mundos. (556)

Com o tempo, a filha vem a considerar esta experiência bilingue e bicultural como uma mais-valia, para si e para as irmãs. Hoje professora, a coordenar o ensino da língua inglesa em doze países do Médio Oriente, Helena observa: “A maior sensibilidade meta-linguística das crianças bilingues permite uma percepção precoce da vertente abstracta e simbólica das palavras” (561). Falando da mãe, diz:

Ao longo dos anos, a minha mãe foi aprendendo a comunicar à vontade na língua inglesa e, com o meu pai ao lado, tornou-se numa pessoa activa e respeitada na comunidade da Califórnia. As entradas nos diários foram mostrando mais auto-confiança e mais abertura ao exterior, ao mesmo tempo que documentavam o seu envolvimento social, mais do que o seu isolamento pessoal. (562-3)

Património e Tradições

Para combater a solidão da migração, e para participar em eventos sociais e cultivar as tradições das ilhas, a maioria das pessoas que emigra procura as associações e sociedades da comunidade. No artigo “A mulher portuguesa nas sociedades fraternais da Califórnia” (I: 149-172), Deolinda Adão, directora do Portuguese Studies Program da University of California, Berkeley, faz um esboço da história de cinco sociedades comunitárias da Califórnia, duas das quais – SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel) e UPPEC (União Portuguesa Protectora da Califórnia) – foram pioneiras porque, numa altura em que o associativismo era masculino, e continuou a sê-lo marcadamente até aos anos 70 do século passado, estas duas sociedades foram criadas por e para mulheres, há mais de um século.

SPRSI

Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel

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1889

SPRSI

Figura 3: Sigla da Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel.


Das muitas e variadas associações e sociedades que organizam eventos comunitários e mantêm as tradições açorianas na Califórnia, as que são conhecidas como Irmandade do Espírito Santo (IDES), ou Sociedade do Espírito Santo (SES) são notáveis. Existe uma, e por vezes várias, em cada comunidade, formando uma rede que atravessa o estado, de norte a sul. A primeira foi criada em 1861. Ao longo de 150 anos, chegou a haver 144 irmandades. Hoje, 99 mantêm-se em actividade, organizando celebrações em honra do Espírito Santo em todo o estado.

Desde 1861,

houve 144 irmandades do Espírito Santo na Califórnia.

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Presentemente,

99 destas irmandades continuam em actividade.

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Figura 4: Imagem da rainha e aias de uma festa do Espírito Santo na Califórnia.


No artigo “As rainhas das festas na Califórnia: a inversão e reversão do ritual” (II: 281-316), a antropóloga Mari Lyn Salvador descreve os rituais que caracterizam esta tradição secular, dizendo: “As rainhas participam em festividades que derivam do ciclo ritual português associado a Santa Isabel, Rainha de Portugal de 1261 a 1336” (282). Numa perspectiva histórica e antropológica, Mari Lyn descreve “uma das formas encontradas pelos imigrantes para combinar elementos expressivos do país de acolhimento, com os elementos da sua terra natal que consideram importantes para a manutenção da sua identidade cultural” (283).

De uma forma sintética, Mari Lyn explica como “uma rainha do século XIII que oferecia as suas jóias para dar de comer aos pobres e coroava um homem pobre com a sua própria coroa” foi transformada nas rainhas de hoje, ricamente trajadas com vestidos, capas e tiaras de luxo. Tal metamorfose é exemplo claro do processo de recriação e adaptação das tradições do Velho Mundo, transplantadas no Novo Mundo. Simultaneamente, é um exemplo notável da intervenção activa da mulher na transmissão do património cultural, entre gerações.

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Caixa de texto: Figura 5: Imagem de uma mãe e a filha, rainha da festa de Espírito Santo.


A Expressão Artística

Como migrantes, as/os açor-descendentes vivem a sua herança cultural de formas variadíssimas, com características pessoais e idiossincráticas. A diversidade de técnicas e temáticas nas obras de duas artistas plásticas da Califórnia retrata bem esta realidade. A mais jovem artista, Marlene Angeja, que vive na área de San Francisco, diz em “Duas paisagens: a visão de uma artista luso-americana” (II: 421-438):

Aquilo que une as várias formas que as minhas obras assumem é uma força subjacente, que é muitas vezes inconsciente e instintiva. Essa força motora parece estar relacionada com duas coisas. Uma é a paisagem das Ilhas dos Açores. A outra é o meu interesse nas histórias, lendas e mitologias do povo português. (422)

Caixa de texto: Figura 6: Imagem da obra “Duas paisagens” de Marlene Angeja.img025

A obra “Duas Paisagens” conjuga a tradição da vindima nas ilhas com a vivência do meio rural da Califórnia onde Marlene cresceu. Outro exemplo do seu trabalho é a própria capa da antologia A Mulher nos Açores e nas Comunidades, que retrata a mãe desta artista, hoje mestre em Belas Artes e professora na California State University, San José. Referindo-se a outra obra, Marlene desvenda aspectos da sua experiência como descendente de emigrantes oriundos dos Açores:

Ao Aeroporto é um desenho mixed media de uma menina com o dedo na boca… Ao longo do lado esquerdo da tela lemos as palavras “eu fui ao aeroporto, tu foste ao aeroporto, você foi ao aeroporto…” Esta conjugação do verbo “ir” em português evoca a aquisição de uma língua estrangeira. Alude, também, ao medo e ao encanto que senti na primeira viagem às ilhas e ao sentido de perda que senti quando partimos. Um aeroporto é um lugar de chegadas e partidas. Como os portos de onde os antigos marinheiros partiram para as Descobertas, é um lugar marcado pela saudade. (423)

A segunda artista é Maxine Olson, que vive no sul do Vale de San Joaquin e tem um largo currículo artístico. Em vez de abstracta, como a da Marlene, a obra de Maxine é claramente figurativa, justapondo imagens de pessoas que marcaram a sua vida numa tentativa de recriar na tela as narrativas de uma açor-descendente. O artigo de Maxine tem por título “Um retrato da minha mãe: o que ficou por dizer” (Volume II: 409-420) e conta a história da sua viagem aos Açores, em busca de respostas sobre as suas antepassadas. Maxine acaba o texto dizendo:

As tentativas que tenho feito para descobrir os segredos da vida de minha mãe, e da mãe dela, têm-me levado a perceber melhor as forças que controlam a minha vida. Se vamos aprender com o passado, e ser perdoadas pelas nossas decisões e omissões no presente, não podemos esquecer as estórias e as ofensas, as penas e as dificuldades pelas quais as nossas progenitoras passaram na sua demanda pelo amor e pelo afecto. (414)

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Caixa de texto: Figura 7: Imagem da obra “Retrato da Minha Mãe” da artista Maxine Olson.


A Saúde e o Envelhecimento

A construção da identidade migrante depende muito das relações em família e da postura perante o passado e a vida presente dos familiares. Nesta demanda, o desafio é ainda maior quando o envelhecimento das pessoas que nos são queridas bate à porta. Efectivamente, neste contexto, como em tantos outros, as mulheres têm maior tendência para assumir o papel de cuidadoras, dentro da família e da própria comunidade. Esta dinâmica social é a génese do artigo “POSSO: um centro comunitário da Califórnia” (IV: 975-982), da autoria de Vicky Machado. Como co-fundadora da POSSO e elemento activo da comunidade, Vicky descreve a origem deste centro comunitário, há mais de três décadas:

A Portuguese Organization for Social Services and Opportunities (POSSO) é uma ONG e foi criada pela comunidade portuguesa de San José para auxiliar imigrantes na sua integração social e adaptação ao país de acolhimento. Foi fundada em 1976 para assegurar à comunidade portuguesa pleno acesso aos serviços sociais e benefícios governamentais… Éramos formados e estávamos inspirados pela onda de orgulho étnico que prevalecia na América de então, e pela calorosa lealdade que sentíamos pelos nossos pais e avós imigrantes… Para o nome, escolhemos o acrónimo POSSO, precisamente para combater o fatalismo da nossa comunidade idosa, que se sentia fragilizada para conseguir a integração social de que precisavam para lhes garantir a sua quota-parte do sonho americano. (975)

Health Fair at POSSO

Figura 8: Imagem da dinâmica social na sede da organização POSSO.


Ao descrever os muitos programas e serviços da POSSO, Vicky sublinha a importância desta organização para a comunidade idosa, “um grupo isolado porque as/os familiares tinham e têm o seu tempo muito ocupado, trabalhando fora de casa para conseguir a sobrevivência económica da família” (976). Ao terminar, Vicky destaca a intervenção feminina neste projecto comunitário:

Desde o princípio, as mulheres têm sido fundamentais para a POSSO, como fundadoras, chefes, staff e voluntárias. Numa perspectiva tradicional, a POSSO desempenha, hoje, as “tarefas da mulher” porque presta cuidados e apoio às pessoas idosas e outros familiares vulneráveis, enquanto as mulheres, que cumpririam tais tarefas, trabalham fora de casa, contribuindo assim para o sustento da família e para a sua realização profissional. Vista nesta perspectiva, a POSSO deve o seu sucesso e longevidade à feliz conjugação de valores tradicionais e actuais. (978)

Educação e Empresariado

Tradicionalmente, a mulher açoriana, dentro e fora das ilhas, foi sujeita a muitas limitações e condicionalismos sociais e culturais. No contexto actual, muito mudou. Na educação, por exemplo, verifica-se uma acentuada presença da mulher no ensino superior. Elmano Costa descreve esta situação no artigo “A feminização do ensino superior numa comunidade rural da Califórnia” (III: 575-620). Este educador faz um esboço da comunidade rural, situada no norte do Vale de San Joaquin, ao mesmo tempo que descreve a evolução dos valores e olhares da mesma, no que concerne à educação, ao trabalho e à situação da mulher. Ao apresentar os resultados do seu estudo, este educador e professor na University of California, Stanislaus, faz a seguinte síntese:

As mulheres luso-californianas gozam de oportunidades que as suas mães nunca tiveram. Podem seguir uma carreira; casar quando querem e não porque precisam de alguém que as sustente; escolher ficar solteiras; ou optar por serem domésticas. E podem regressar à vacaria, para assumir a gerência do negócio, mas como gerentes diplomadas. (583)

Elmano termina o seu texto com este desejo: “E oxalá que elas possam dar aos seus filhos homens a mesma motivação que as levou a frequentar e a completar, com êxito, os seus cursos superiores, para que eles, no futuro, possam também usufruir dos benefícios de um diploma universitário” (584).

A mulher açor-californiana tem-se aventurado, ela própria, em outros domínios, incluindo o mundo empresarial. O mesmo autor debruça-se sobre este tema no artigo “Empresariado no feminino: novos horizontes para a mulher luso-americana” (VI: 1429-1456). Ao analisar a crescente participação da mulher como empresária no mundo dos negócios, Elmano observa: “Estas mulheres são, sem dúvida, pioneiras, pois conseguiram não só superar a discriminação de género, como também ultrapassaram as dificuldades que imigrantes, da primeira e da segunda gerações, tiveram de enfrentar para se integrarem na nova cultura do país de acolhimento e no mundo competitivo do trabalho e do empresariado” (1429).

Efectivamente, visto que a relação de qualquer imigrante com a sua comunidade é multifacetada e, por vezes, muito complicada, estas empresárias californianas tiveram de enfrentar e ultrapassar muitos obstáculos e desafios. Numa óptica negativa, a descriminação de género teima em persistir e são muitas as dificuldades da integração numa outra cultura. Do lado positivo, verifica-se uma relação de grande proximidade e envolvência com a comunidade, fazendo com que estas mulheres destaquem o desejo e o prazer que sentem ao contribuírem para o bem-estar da mesma. Segundo o autor: “As empresárias luso-americanas gozam de outra característica que não vem na literatura. Quase todas sublinham a importância que tem nas suas vidas o contributo que podem prestar à comunidade luso-americana” (1439).

A Indústria de Lacticínios da Califórnia

Em termos económicos, ao longo de décadas, o grande trunfo da presença açoriana na Califórnia tem estado na indústria de lacticínios, hoje um negócio de milhões que está predominantemente nas mãos deste grupo da diáspora. À primeira vista, estas mãos parecem ser só masculinas. Contudo, um olhar mais cuidado revela outra realidade, como demonstra Alvin Graves em “Empresárias invisíveis: a mulher açor-americana nos lacticínios da Califórnia” (VI: 1487-1510). Este estudioso da presença açor-americana nos lacticínios californianos aponta para duas épocas:

…o período pré-2ª guerra mundial, quando dominava a cultura tradicional e a produção leiteira era um modo de vida, e o período pós- guerra, quando as normas culturais foram-se alterando e a produção leiteira do estado se transformou no que se chama agrobusiness. A mulher está bem presente em ambos os períodos, mas de uma forma invisível. (1488)

Figura 9: A mulher migrante na indústria de lacticínios da Califórnia. *

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Embora tenham sempre contribuído para os trabalhos da lavoura, as mulheres, actualmente com níveis mais elevados de escolarização, estão mais bem preparadas para lidar com o novo mundo do agrobusiness, em particular com a gestão financeira e a criação de bezerros. Alvin explica:

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

…são elas que fizeram cursos superiores; especializaram-se em gestão de empresas, finanças, contabilidade ou direito, tendo assim uma formação essencial que o marido raramente possui. Como a geração anterior, muitas continuam a gerir o negócio. Outras fazem marketing e formação do consumidor, e tomam parte nos lobbies do sector e na promoção de legislação favorável ao negócio leiteiro. (1495)

Figura 10: Imagem evocativa da presença açoriana na indústria leiteira californiana. *

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Formada em direito, Deanne Ferreira é uma açor-descendente que lida de perto com a legislação referente aos lacticínios, especialmente vista à luz das questões ambientais. No texto “Uma mulher e o ambiente: os desafios de sempre (VI: 1643-1658), Deanne explica:

Sendo recente, a legislação ambiental é ainda considerada um nicho do mercado no mundo da advocacia. É uma área dominada por homens, porque é normalmente necessário ter formação científica, e são os homens, mais do que as mulheres, que fazem a sua formação nas ciências exactas. (1645)

Tendo referido a participação dos seus antepassados na indústria leiteira do estado, Deanne conjuga a sua profissão com as suas raízes açóricas quando, ao referir o seu futuro profissional, descreve as suas intenções e motivações da seguinte forma:

Estou a estudar os efeitos da emissão de gás metano pelas vacas leiteiras. Várias vacarias estão a utilizar equipamento próprio para captar o gás metano do estrume (biomassa) de vaca, para depois convertê-lo em energia renovável. Os benefícios são notáveis. É minha intenção auxiliar os produtores de lacticínios da Califórnia a lidar com o labirinto de regras e leis ambientais que existem actualmente. Quero contribuir para que a herança dos nossos antepassados na indústria leiteira deste estado permaneça nas comunidades de descendentes de imigrantes dos Açores, um povo cujo esforço e conhecimento ultrapassaram tudo e todos. (1648-9)

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

Redefinindo a Identidade Cultural

Demonstrando, assim, uma grande sensibilidade para com a sua herança cultural e o reconhecimento inequívico das capacidades dos seus antepassados, Deanne Ferreira é uma jovem açor-descendente que, no contexto actual, está a redefinir a sua identidade cultural à luz dos novos paradigmas da contemporaneidade. Outro exemplo é Márcia Dinis, que se apresenta como “O ser jovem e luso-americana na era da globalização” (I: 181-190), descrevendo os afazers do seu dia-a-dia e os parâmetros da sua identidade da seguinte forma:

Levanto-me e tento fazer um jogging matinal todas as manhãs. Vou às aulas, faço umas horas de trabalho part-time, e às vezes jogo futebol ao serão. Depois, vou para casa e falo ao telefone com a minha mãe. Estas conversas são a melhor parte do meu dia porque me acalmam e me dão a oportunidade de falar a minha língua materna, o português… Na faculdade, escolhi o curso de Estudos Globais. Se perceber melhor a nossa sociedade global, talvez possa ajudar a minimizar os malefícios da mesma, enquanto ajudo a promover os benefícios. Ao mesmo tempo, estou a especializar-me em Português. Estudo a língua, a literatura e a cultura. Sou luso-americana, sou mulher e tenho 21 anos. (181)

Mais à frente no seu artigo, a jovem Márcia faz o seguinte o balanço do seu mundo e da sua identidade pessoal e cultural, afirmando:

Sou uma pessoa privilegiada. Acredito plenamente que esta era da globalização tem levado os jovens a sentir orgulho pela sua herança cultural… A bandeira portuguesa por cima da minha cama, a tatuagem do açor nas minhas costas, as peças de louça tradicional penduradas na parede do meu apartamento lembram-me que estou acima da média, que sou especial porque sou portuguesa. (182)

Carol Gregory é outra jovem de ascendência açoriana na Califórnia que está a desbravar o seu próprio caminho e a forjar o seu retrato individual, em relação estreita com o passado colectivo da comunidade californiana. No artigo “A geografia da minha identidade cultural” (I: 191-212), Carol traça as seguintes coordenadas identitárias:

Como geógrafa, estou a estudar a dimensão geográfica e a localização específica dos marcos da cultura lusa na Califórnia. Refiro-me a salões, igrejas e outros edifícios, e a nomes de ruas, zonas comerciais, bairros e parques. A riqueza deste património é o tema da minha tese de doutoramento, onde faço um inventário da quantidade e localização destes marcos historico-geográficos, desta forma ilustrando e descrevendo o impacto da nossa presença na paisagem cultural deste estado. (195)

Tendo colaborado com a Portuguese Historical and Cultural Society (PHCS) de Sacramento, a autora afirma que o contributo de Portugal foi fundamental para a história e para “o conhecimento geográfico do Mundo” (191).

Para concluir, o exemplo de uma jovem que está a redefinir a sua identidade e herança cultural ao ritmo da contemporaneidade. Chama-se Felicia Viator e é autora do artigo “A Neta do hip-hop: uma luso-americana no mundo da música contemporânea” (II: 381-392). Esta jovem, que vive na cidade de San Francisco, é DJ e é conhecida pelo apelido Neta. Como mulher, Felícia considera-se “quase um oximoro na cena hip-hop” e explica que, desde o seu início, nos anos 70, a cultura hip-hop tem seguido o modelo masculino. Eis a surpresa e a satisfação do público que assiste às suas actuações. Descendente, pelo lado materno, de emigrantes do Pico, esta jovem explica que escolheu o nome Neta em memória da avó. De visita à ilha ancestral, Felicia descreve os seus sentimentos e as recordações da avó, redefinindo-se como pessoa à luz desta herança vital e marcante, quando escreve:

De visita ao Pico, deixei-me levar pelo mundo da minha e comecei a perceber a dor que sentia. Procurava compreender como ela e este mundo tinham sido, sempre, uma parte vital de quem eu sou. Logo de seguida, a alcunha de DJ que tinha escolhido, o nome pelo qual sou conhecida no mundo do hip-hop de toda a área de San Francisco, cristalizou-se. Subitamente, o meu espírito elevou-se e senti simultaneamente humildade e ousadia. Parti do Pico e dos Açores sabendo: “I am Neta.” (385)

“I am Neta

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Figura 11: Imagem da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.


BIBLIOGRAFIA

GOULART, T., coordenação (2003). The Holy Ghost Festas: A Historical Perspective of the Portuguese in California. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

GRAVES, A., (2004). The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2003). A Mulher nos Açores e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes I, II, III e IV. Ponta Delgada: Empresa Gráfica Açoriana.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2008). A Mulher e o Trabalho nos Açores e nas Comunidades / Women and Work in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes V e VI. Ponta Delgada: UMAR-Açores.