quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Aida Baptista CV E COMUNICAÇÃO

Aida Baptista

Licenciada em História (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), Pós- Graduada em Estudos Europeus (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e Mestre em Literatura e Cultura Portuguesa – Época Moderna (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
Aposentada desde Outubro de 2006, exerceu sempre a actividade docente, tendo leccionado em vários níveis de ensino. Nos últimos anos de docência, desempenhou o cargo de Leitora de Língua e Cultura Portuguesas no Estrangeiro, ao serviço do ICALP e do Instituto Camões.
Em 1989, cumpriu uma primeira missão de oito anos, na Universidade de Helsínquia, Finlândia, a que se seguiu uma segunda de cinco anos na Universidade de Toronto, Canadá, de 1998 a 2003. De 2004 a 2006, dirigiu o Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões, em Benguela (Angola) e leccionou no Instituto Superior de Ciências de Educação de Benguela, Pólo da Universidade Agostinho Neto de Luanda.
Obras publicadas: Passaporte Inconformado, Edições MinervaCoimbra, 2004; Chão da Renúncia, Edições MinervaCoimbra, 2008; Entre Margens de Afectos (c/ Gabriela Silva), Liga Portuguesa Contra o Cancro, Ponta Delgada, 2009; Passos de Nossos Avós (c/ Manuela Marujo), Ponta Delgada, Publiçor, 2010; Abraço de Mar entre Ilhas e Continentes (c/ Gabriela Silva), Ponta Delgada, Publiçor, 2011.
Colabora com alguns jornais e revistas, onde publica artigos ligados às questões da e/imigração.


Resumo da comunicação

AVoz das Avós - Vozes de Agora, Vozes de Outrora

Ao longo da História das Migrações, as mulheres têm constituído um grupo esquecido, quase só tendo direito a registo quando este se faz à sombra/ou ao lado de um homem.
Há algumas décadas, contudo, começaram a ser consideradas matéria-prima de interesse para trabalhos de investigação. Entre elas, o grupo das avós e o papel determinante que têm desempenhado na organização da vida familiar, em situações de convivência inter-geracional.
Em contexto de diáspora este papel é ainda mais relevante porque elas contribuem para a construção de uma identidade social, que se afirma através de um forte legado patrimonial passado de geração em geração.
Esta comunicação pretende, através de testemunhos de netos (vozes de agora) analisar e perceber a importância da força das avós (vozes de outrora), no percurso das suas vidas, ao desenvolverem relações e linguagens muito cúmplices de interacção social.







A VOZ DAS AVÓS: VOZES DE AGORA, VOZES DE OUTRORA

Vivo, passo e nasço a cada instante
e não me demoro:
respiro um tempo que já morreu.
Estou de passagem, já disse.

Eduardo Bettencourt Pinto, Viajar com sombras, 2008

Estando este Encontro centrado na temática, MULHERES PORTUGUESAS NA DIÁSPORA, somos desde já convocados a falar de um grupo que, ao longo da História, tem sido duplamente esquecido. Primeiro, enquanto Mulheres, depois, como Mulheres em contexto de Diáspora, pesem embora as iniciativas que nas últimas décadas se têm realizado, de que destaco o dinâmico papel da Associação Mulher Migrante.
Como cidadã, que passou pela experiência de ter vivido espaçados períodos da sua vida afastada do espaço-berço, sinto-me particularmente tocada por este tema. Por isso, em 2003 estive de forma muito empenhada ligada à organização do 1º Congresso Internacional «A Vez e a Voz da Mulher Imigrante Portuguesa» , cuja iniciativa partiu do entusiasmo e profissionalismo da Professora Manuela Marujo, Directora Associada dos Estudos Portugueses da Universidade de Toronto, em cujo Departamento de Espanhol e Português, eu desempenhava a função de Leitora de Português do Instituto Camões.
Se o berço deste congresso foi a Universidade de Toronto, outros se seguiram a regatear-lhe o colo, de tal modo que depois de Berkeley, Macau, Curitiba e Paris, será Ponta Delgada, nos Açores, a acolher a sua sétima edição no próximo ano.
Aquando desta incursão pelo universo feminino das Migrações, um grupo de mulheres se destacou pelo papel que até então tinha desempenhado na organização da vida familiar, em situações de convivência intergeracional - o das avós - pela forma como têm contribuído para a construção de uma identidade social, como defende Natália Ramos : «No espaço familiar constroem-se laços de solidariedade e identidades, tecem-se vínculos e relações privilegiadas, desenvolvem-se competências emocionais e sociais... (...)», pág. 210.
De facto, a prática docente junto de alunos emigrados ou lusodescendentes, revela-nos que estes, quando questionados sobre uma figura que tivesse marcado as suas vidas, quase sempre apontaram os avós e, de entre estes, as avós. E isto é válido para qualquer grupo étnico, credo, condição social, latitude ou longitude, porque o mapa dos afectos é avesso a qualquer nomenclatura que categorize as emoções, e às mulheres incumbe quase sempre este papel afectivo. No entanto, ganha uma importância maior quando falamos de comunidades que vivem entre dois mundos - o que deixaram e aquele em que passaram a viver -, cujas vidas são um cais permanente de partidas e de chegadas. O fio ténue que une as duas fronteiras é, na maioria das vezes, tecido pelas avós. Num universo de ausências e encontros breves, a voz da avó é, amiúde, a única ponte a unir dois tempos: o passado e o presente, num ritual de passagem de uma memória colectiva.
Não esqueço nunca uma aluna ruiva, de olhos profundamente azuis e pele clara salpicada de sardas, que, sem saber construir uma frase em português, me recitava orações e benzeduras para espantar o quebranto e o mau-olhado, no mais característico e cerrado sotaque de Rabo de Peixe, que aprendera da boca da sua avó açoriana.
Foram outros testemunhos como este, a indiciarem o forte contributo dos avós para a preservação e salvaguarda de um rico património linguístico, que levaram Manuela Marujo, a interessar-se, entre outros estudos, pelo papel das avós na manutenção da língua materna como língua de afectos. Daí até realizar um congresso exclusivamente voltado para a temática dos avós, foi apenas o clique de uma ideia.
Assim nasceu o 1º Congresso Internacional «A Voz dos dos Avós - Migração e Património Cultural», realizado em 2008, em Ponta Delgada, em parceria com a Universidade dos Açores. Congressos centrados nesta temática, tendo em conta a natureza e diversidade dos painéis tratados, constituem um valioso contributo para o arquivo do que é já considerado Património Imaterial da Humanidade, à luz da Convenção da Unesco de 2003, que entrou em vigor a 20 de Abril de 2006 . Para efeitos desta Convenção, o patimónio imaterial manifesta-se no domínio das tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; as artes do espectáculo; as práticas sociais, rituais e eventos festivos; conhecimentos e práticas relacionadas com a natureza, bem como as aptidões ligadas ao artesanato tradicional. Daqui se conclui que o património imaterial está em cada um de nós, enquanto produtor de conhecimentos e guardador de memórias. Contudo, se nos restringirmos apenas a guardar essas memórias, sem lhes darmos vida, seremos simples fiéis de armazém - aquele que arquiva coisas paradas no tempo.
Contrariando este conceito de fiel de armazém, quando se preparava a organização do segundo congresso, em 2010, em Lisboa, propusemo-nos (a professora Manuela Marujo e eu) fazer uma recolha de narrativas em que, num esforço selectivo da memória, pedíamos a netos (vozes de agora) que nos falassem do período em que tinham vivido/convivido com os avós (vozes de outrora) e das marcas que estes haviam deixado nas suas vidas. Desta forma, nasceu a Antologia «Passos de Nossos Avós» , constituída por um conjunto de textos, cujos autores provenientes de diferentes geografias, nos dão a perspectiva de mundividências de diversas diásporas: Cabo Verde, S. Tomé, Angola, Brasil, Macau, Estados Unidos, Canadá e Portugal.
No que toca à figura retratada, as avós maioritariamente surgem em primeiro plano, ficando-se os avôs por presenças diluídas no turbilhão das lembranças. Se um ou outro testemunho aparece sobre o avô, quase sempre se ficou a dever a uma insistência nossa, que nunca quisemos transformar a avosidade num reduto exclusivamente feminino.
Tal tendência não é de estranhar, já que tanto a tradição literária como os estudos que nas últimas décadas têm sido feitos, de que destaco a mais recente publicação da professora Stella António , comprovam o estabelecimento de uma linha matrilinear nas relações entre avós e netos. Como nos diz a pesquisadora Ilda Januário , na recensão que fez sobre a obra, «Os frutos do matrimónio eram coisas de mulheres, assim como os do património captavam mais a atenção e a energia dos homens». E a verdade é que ainda hoje, apesar das grandes transformações que os papéis têm sofrido dentro da família, a tradição continua a fazer recair sobre as mulheres a responsabilidade de prestar cuidados aos outros: às gerações mais novas (filhos e netos) e à geração mais velha (dos pais, avós e outros parentes idosos). Segundo a tese de Maria de Fátima Ferrão Pires , «Assim como a idade influencia a relação avós-netos, também o género é determinante neste tipo de relação, justificando a tendência das avós, mais do que dos avôs, para se relacionarem com os netos, e mais particularmente com as netas».
Ao lermos as narrativas de Passos de Nossos Avós, bem como todo o material com que frequentemente somos brindados através da literatura, depressa percebemos a importância que as avós ganham no seio do agrupamento familiar. Estas e outras histórias de vida (sob a forma de crónicas, contos ou romances) atestam a permanência de determinados padrões culturais que contribuem para a construção de uma identidade social. Diz-nos Eduardo Bettencourt Pinto , um dos autores representados na antologia Passos de Nossos Avós, que «o nosso apelido tem uma história e um percurso, e que na linha enviesada da estirpe somos a consequência de uma miríade de passos e vidas que nos antecederam» (pág. 45).
Não sendo pretensão desta minha comunicação entrar pela via dos pesquisadores que, de forma rigorosa, se têm dedicado à tarefa de estudar casos e nos darem estatísticas precisas e fiáveis, fico-me pela palavra literária que, por outras vias, retrata uma mesma realidade. Se estivermos atentos a alguma das mais recentes publicações que versam o tema da emigração/imigração, constatamos que as avós desempenham o papel de figuras tutelares, à volta das quais se constrói toda a narrativa. Na impossibilidade de exemplificar com personagens de várias obras lidas, ficar-me-ei pela referência a autoras que, no actual contexto, satisfazem o guião da minha exposição: Isabel Mateus , Júlia Nery e Adelaide Freitas .
Isabel Mateus, no seu conto «Os Meninos da Avó» e nos primeiros textos de «A Terra do Chiculate», fala-nos de meninos órfãos de mães que partiram a rasgar as estradas francesas da emigração, deixando os filhos ao cuidado das avós. O conto «Os Meninos da Avó» começa: «Ficavam muitos na Granja. (...) Os pais partiam para lhes darem uma vida melhor» (pág. 57). A Granja tem representação física no mapa do nordeste transmontano, mas é uma metáfora para qualquer outro lugar do mundo, de onde saíram mulheres com peitos cheios de leite para os deixaram secar na ânsia de alimentarem a fome de partir.
Mais tarde voltavam, em diálogos de incertezas: «Olha homem aquela é com certeza a nossa filha! Só pode ser ela, os traços que dela tenho na lembrança são os mesmos!» (pág. 58). Mas a filha, essa, vivera uma vida vazia de memórias: «Eu é que de mãe nada sabia. (...) Avó sim, essa sabia o que significava. Era por ela que chamava quando tinha fome, sede, frio ou calor. Nas noites frias do Inverno transmontano dormia enroscada no seu ventre e, para consolar outras feridas da alma, colava-lhe as minhas mãos no rosto como pequenas tenazes que não deixassem escapar a quentura das brasas» (pág. 58).
Os Meninos da Avó, se por um lado são uma homenagem às avós - estas, no caso concreto, mães duas vezes -, não deixam de ser um libelo acusatório contra as mães que, em nome de um futuro risonho para os filhos, lhes deram presentes de abandonos. Não admira, portanto, o forte sarcasmo contido neste pensamento da protagonista do conto: «Chegavam e pensavam que num mês se tornavam pais!» (pág. 59). Por isso, lhes desobedeciam negando-lhes qualquer autoridade sobre as suas vidas. Meu pai disse-me: «- Com este calor pensas que vais regar a horta com a tua avó?» (pág. 59). A resposta, que ganhou a forma de pensamento por não ter tido coragem de se soltar, foi: «Eu não queria saber da rega, queria a minha avó, afinal a minha mãe» (pág. 59).
Numa idade em que os papéis não estão ainda devidamente definidos e hierarquizados, mãe e avó fundem-se e confundem-se, quando à função biológica se sobrepõe a dos afectos. Atente-se no desabafo desta personagem de «A Terra do Chiculate»: «Antes dos doze meses, tinha perdido contra a França a mãe que me possuíra nas suas entranhas. Aos vinte e um anos, desaparecera, para junto de Deus, a que me embalara» (pág. 59).
Na primeira parte de «A Terra do Chiculate» são inúmeros os textos que nos dão, como refere a badana, uma «pungente perspectiva infantil» de quem se viu obrigado a lidar com um processo, nem sempre pacífico, de transferência de afectos. «Sem pontos de referência sólidos que me ligassem a ela [à mãe], nos meus primeiros anos de vida, todas as minhas recordações dessa época passavam por uma vinculação à minha avó...» (pág. 53).
Os pais, demasiado envolvidos na conquista do sucesso, desvalorizavam a existência destes dramas interiores quando, já com uma vida confortável, os arrancavam dos braços das avós para os terem junto de si.
«Que te falta? Não tens tudo?» - pergunta uma das mães.
A resposta ficava suspensa na recordação da avó: «Tinha. (...) Mas, sem a presença da minha avó, faltava-me tudo. Não possuía o seu afecto e o seu carinho, que só ela me dava sem imposições, nem contrapartidas. (...) Eu precisava do pão, mas que não me tirassem o mimo. Para minha mãe, o pão destronava por completo o amor e os afagos do dia-a-dia» (pág. 54).
Neste doloroso processo de rupturas familiares causadas pela emigração, muitas destas crianças cresceram sem a memória da voz dos pais. Já crescidas, sentiam-se confundidas e nomeavam-nas mães ou avós, conforme lhes ditava a sonoridade do carinho com que eram ditas ou a falta de nunca as terem pronunciado. Atente-se no desejo da menina que nunca perdoara à mãe o não a ter levado consigo, de cade vez que, depois de uma visita, regressava a França: «Deitara-me resoluta a saltar da cama no mesmo instante em que pressentisse os passos de minha mãe e os últimos preparativos para a partida. Iria contra a sua vontade. Estava decidido. Também me queria habituar a pronunciar a palavra "mãe" no dia-a-dia» (pág. 37). Noutros casos, porém, a recusa era bem evidente: «Por infelicidade minha, a sonoridade da palavra mãe não fazia ressonância nos meus tímpanos, assim como também tenho a convicção de que o seu significado não era bem recebido ou aceite no meu subconsciente. Habituara-me desde o berço a outra palavra pequenina, aguda, cujo "ó" ecoa ao mesmo ritmo do embalo que se dá a uma criança» (pág. 48). Significativo é o título do texto onde este excerto se insere - A Batalha Campal -, porque nos coloca perante a disputa, em campo aberto, entre dois tipos de afectos: um que reclama a força do ventre, o outro, a do colo. E, «a menina de oito anos, a completar quase os nove, teria de, num abrir e fechar de olhos, chamar-lhe mãe em vez de avó... (pág. 47) e esquecer que, durante todos aqueles anos, também o colo de sua mãe tinha andado a salto num jogo de Cá e Lá que ela nunca entenderia.
Enquanto Isabel Mateus, focada numa emigração voltada toda ela para França, nos dá narrativas muito vivas de avós que ficaram do lado de cá a criar os netos, para que fossem os filhos a poder sair, Júlia Nery, retrata-nos em "pouca terra... poucá terra" uma neta que «não escolhera cortar as raízes e partir; fora levada para longes terras a cavalo dos sonhos da família, a que a avó Maria Menina pusera fermento...» (pág. 13). Nesta obra, é a figura da avó, conhecida na aldeia por Maria Francesa, que ocupa o lugar principal na narrativa. Dotada de um enorme poder, é ela quem toma as decisões mais importantes da família, empurrando a filha Maria da Luz e o marido para a emigração por terras de França. O seu projecto não passava por amealhar francos, mas «entrar pelo mundo fora, mudar; conhecer coisas novas e ter uma neta estudada» (pág. 14), porque, diz-nos a autora, «A instrução era, no entender de Maria Menina, a chave mágica que abre todas as portas, até a dos palácios» (pág. 121).
Maria Menina realiza o sonho - Leonor faz estudos superiores em França, em Ciências Políticas, viveiro dos quadros da nação, comprovando, desta forma, o grau de inserção na sociedade. Contudo, de Portugal, sabe apenas o que a avó lhe ensinou e as aprendizagens que as curtas férias de verão lhe permitiam guardar. Um dia, regressa de comboio e, esta viagem, «descrita por uma mulher emigrante, através da qual se reconstitui a sua condição e histórias de vida da irmã, da mãe e, sobretudo, da figura axial da avó, traz para primeiro plano, segundo José Manuel Esteves , mais do que a mulher emigrante, a mulher, deslocando-se o próprio romance, por vezes em sobressalto, como se as agulhas não estivessem certas, entre dois carris: o da emigração e o da mulher» (Portuguesas na Diáspora, pág. 103).
Porém, os carris em que viajamos pelas vidas desta avó e desta neta estão em sintonia perfeita numa cumplicidade toda ela feita de compreensão e afectos. Maria Menina é bem o exemplo da mulher a quem o passado tolheu o futuro, quando condenada às leis de todo o sempre: «mulher escrava da vontade alheia, casada - submissão, ventre cheio, pudor e honra, agrilhoada ao seu homem, ao trabalho, às dores das entranhas repetidamente habitadas, escondendo as leis da sua cabeça e dos seus cinco sentidos na solidão» (pouca terra... poucá terra, pág. 127).
Maria Menina nunca se conformou e, assim que a viuvez lhe devolveu a liberdade de voltar a ser ela - a mulher que nascera com as estradas nos pés e a fome do mundo no olhar -, empurrou toda a família para o ventre de um vagão que, deslocando-se ao som ritmado da onomatopeia, pouca terra... poucá terra..., se encheu de muito mundo.
Adelaide Freitas, uma açoriana com anos de emigração no currículo, já que o seu crescimento e percurso académico se fez nos Estados Unidos, é autora de «Sorriso por Dentro da Noite», num registo muito próximo da autobiografia, onde igualmente se conta a saga de uma família emigrante. Sorriso por Dentro da Noite - todo ele construído à volta de uma família açoriana separada pela força dos movimentos migratórios do século passado, que empurraram grande parte da sua população para a América do Norte - espelha bem uma realidade vivida por todos aqueles que, usando as palavras da autora, “formaram-se em ilhas e nunca mais se arquipelaram”. Neste arquipélago de ausências e encontros breves, a avó é o traço de união entre todos os tempos:
o seu, aquele em que ela, imigrante também, viveu numa América que lhe deu um marido e quatro filhos, seguido de um divórcio que a fez retornar à ilha e enfrentar uma sociedade pouco preparada para aceitar viúvas de vivos;
o dos filhos, dispersos pelos sonhos das terras prometidas;
o dos netos que se encarregou de criar, quando a filha decidiu partir com o marido para a América» (Avós e Migração: Raízes e Identidade, pág. 26).
Destes seis netos (cinco raparigas e um rapaz), Xana, a protagonista do romance, foi entregue aos cuidados da avó materna, com seis meses de fragilidades. É, portanto, graças ao zelo da avó que a menina sobrevive. Os pais, esses, chegam-lhe por fotografia, espalmados nas cartas que de vez em quando vinham da América. E foi através de rectângulos sem alma, e amarelecidos pelo tempo, que a avó lhe deu a conhecer a mãe, na esperança de que Xana a amasse, como se fosse possível amar seres prisisoneiros de molduras. E é assim que Xana vai crescendo, sem pai nem mãe, mas toda ela cheia de avó.
Quando um dia os pais regressaram, o primeiro momento foi de deslumbramento e orgulho perante a beleza da mãe, ao mesmo tempo que a sua cabeça de criança se enchia de dúvidas: “Onde ficarei eu, quando desde os cinco meses sempre vivi com a vovó?! (...) Eu nunca os senti, nunca os palpei. Não sei qual o cheiro da sua pele, se crespa ou macia; se doces ou acres são as suas mãos; se o coração é quente ou frio” (Sorriso por Dentro da Noite, pág. 203). As dúvidas depressa deram lugar a certezas porque, desde o primeiro beijo, Xana sentiu que a mãe, fora da moldura, era qualquer coisa indefinida, deslocada no lugar e no tempo, como se não pertencesse a nenhum dos mundos.
Os pais de Xana decidem voltar a partir, desta vez para o Brasil. A decisão de Xana adivinha-se muito antes do desenlace final porque, ao longo da narrativa, a autora vai-nos dando pistas, como é o caso deste diálogo com o irmão mais chegado: «Olha Daniel, quando a avó embarcar para as nuvens, não te esqueças de me avisar para não me enganar no caminho, porque eu quero é ir dentro da sua barriga» (Sorriso por Dentro da Noite, pág. 117). A barriga que Xana escolhe não é a da mãe, mas a da avó, parideira de dor e amor de que são feitos todos os partos da emigração.
Para concluir, direi que estamos perante três Mulheres (Isabel Mateus, Júlia Nery e Adelaide de Freitas) de gerações diferentes e com diferentes percursos de vida, mas unidas pelo mesmo fio condutor – a autoria de textos sobre emigração, onde as protagonistas são mulheres: mães, filhas e netas.
Muitas destas avós - representadas aqui pelas que ficam (em Isabel Mateus), pelas que partem (em Júlia Nery) e pelas que regressam (em Adelaide Freitas) - são mulheres sem rosto, sem nome, analfabetas, mas que dominam como ninguém uma sabedoria ancestral, que transmitem ao longo de gerações, sob a forma de jogos, usos, costumes, expressões populares, rezas, crenças, causos a par de estórias de fundos ou de encantar e canções de embalar, num universo dominado pela oralidade. Se, como nos diz Vidigal , «Pela memória colectiva das experiências lúdicas de infância, as nossas crianças enquanto futuros adultos, receberão as bases culturais, enraizadas no grupo social de onde provêm», então, não temos dúvidas de que estas avós encheram o quotidiano dos netos de saberes e sabores entranhados até hoje na memória e imaginário de todos.
Assim, e porque é do senso comum dizer que a educação começa na mama ou, no sentido mais lato, no berço, é importante destacar o papel destas vozes esquecidas de outrora, que, nas diferentes diásporas souberam ser o esteio das famílias. Edgar Morin defende que é «Enraizando-se no seu passado que um grupo humano encontra a energia para afrontar o seu presente e preparar o seu futuro». Ora, como na tradição judaico-cristã a vida é representada por uma árvore – a árvore de Jessé – vou recorrer a um outro poema do autor da epígrafe,

Se ergueres alpendres no desertos
e um jardim de regressos, todas as gerações do vento
dançarão
na única memória

porque da nossa passagem, como elemento de uma família, ficará sempre um galho de memória a mover-se no tronco do presente.

Aida Baptista,
Maia 25/11/2011