terça-feira, 1 de junho de 2021

"Associação Mulher Migrante - um trajeto de 25 anos" in "FACES DE EVA"

Maria Manuela Aguiar Espinho | Portugal Email: onlinemulhermigrante@gmail.com A ASSOCIAÇÃO "MULHER MIGRANTE" - UM TRAJETO DE 25 ANOS Setembro de 2020 ORIGENS A "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade" (AMM) nasceu, indiretamente, do diálogo entre governo e movimento associativo, representado no Conselho da Comunidades Portuguesas (CCP), que, na década de 80 do século passado, foi o principal destinatário das políticas públicas designadas por "políticas de reencontro". No primeiro processo eleitoral, em 1981, os membros eleitos e jornalistas, que o compunham, cerca de sessenta, eram todos homens. No segundo, em 1983, apenas duas mulheres, oriundas da quota de jornalistas, tiveram assento num órgão, que espelhava a real desigualdade de sexo no universo comunitário. Bastou, porém, uma conselheira, a jornalista Maria Alice Ribeiro do Canadá, para fazer a diferença, com a proposta de convocação de um congresso de mulheres da diáspora, onde pudessem ter a presença e a voz que lhes faltava no CCP. A Secretaria de Estado da Emigração deu sequência à recomendação, através do "1º Encontro de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo", que foi patrocinado pela UNESCO e teve lugar em junho de 1985, na cidade de Viana do Castelo. Esse feito tornou Portugal país pioneiro na Europa e no mundo, "antecipando em dez anos os esforços das Nações Unidas para o empoderamento das mulheres na sociedade e na política" (Cunha Rego cit. por Aguiar et al., 2015: 24). Daquele 1º Encontro, cheio de ensinamentos, ressaltaram duas conclusões: a intenção de criarem uma organização transnacional, que lhes desse força coletiva, e a proposta de institucionalização do diálogo com o governo, através de mecanismos de audição periódica. Em 1987, foi instituída, na órbita do CCP, com esse propósito, a "Conferência para a Participação e Promoção das Mulheres Portuguesas no Estrangeiro", que, contudo, viria a ser inviabilizada pela queda do governo. Do lado da sociedade civil, tardou a idealizada instância internacional. Só em 1993 seria fundada a Associação "Mulher Migrante", que se apresentou como herdeira daquele projeto contemporâneo da génese das políticas para a igualdade na emigração, em cujo relançamento seria chamada a cooperar, estreitamente, vinte anos depois. SINGULARIDADES A Associação tem por finalidades estatutárias aquelas que a sua própria designação sintetiza: o estudo da problemática das migrações femininas, a cooperação com mulheres profissionais e dirigentes de associações portuguesas no estrangeiro ou imigrantes, o apoio à intervenção das mulheres nas sociedades de acolhimento, em todos os domínios, e o “combate a ideias e movimentos xenófobos” (Gomes cit. por Aguiar et al., 2014: 46), a que dá especial destaque na sua divisa: “Nenhuma pessoa é estrangeira numa sociedade que vive os Direitos Humanos”. No universo associativo feminino da diáspora, ao tempo quase exclusivamente dominado por preocupações sociais e culturais (beneficência, solidariedade, defesa da língua e das tradições), a AMM vinha colocar a ênfase em questões de cidadania, o que era, “de per si”, uma singularidade. E várias outras podia, à nascença, reclamar, como o ser: sediada no país, e voltada, fundamentalmente, para a diáspora feminina; partilhada por mulheres e homens feministas (no sentido em que Ana de Castro Osório falava de feminismo, como “humanismo integral”); formada por emigrantes (integrando cerca de um terço do total de participantes no Encontro de 1985) e não emigrantes; mediadora de universos associativos heterogéneos, em especial, o feminino, o jovem, o sénior, e o meio académico, através dos quais combinava a vertente de estudo e de intervencionismo social. Ao longo de 25 anos de atividade, a AMM tem sido um “forum” interassociativo de reflexão e debate e com esse perfil revelou as suas virtualidades logo num primeiro empreendimento, o congresso mundial de 1995, ao trazer a Espinho cerca de 400 participantes, mulheres líderes de comunidades dos cinco continentes, políticos, jornalistas, funcionários da administração pública, grandes nomes da comunidade científica. Um “encontro de mundos”, que raramente se aproximam e dialogam, de igual para igual. O paradigma de inúmeras reuniões em que prosseguiria o escopo de lançar sobre o fenómeno da emigração um olhar inclusivo da metade feminina, pela via do “congressismo” capaz de repensar estratégias e desencadear dinâmicas de mobilização para a mudança. No seu percurso, distinguiremos duas fases: - A década 1995/2005, no seguimento do congresso de Espinho, é caraterizada pela expansão da rede de delegações e de congéneres no estrangeiro e pela militância no interior do país, em colaboração com a CIDM e o Alto-Comissário para as Minorias Étnicas, e, também, com autarquias, paróquias, escolas, dividindo a atenção entre o evoluir da situação na diáspora, e os problemas sociais da chamada “nova imigração” (do leste europeu), assim como do regresso em massa de emigrantes, que, para as mulheres, significava, quase sempre, regressão, perda do estatuto de independência económica, ganho lá fora. - A partir de 2005, numa “segunda vida”, a AMM alarga a sua ação fora de fronteiras, crescentemente envolvida na planificação de medidas destinadas a motivar mulheres e homens para as questões da igualdade, “de motu próprio”, em conjunto com outras ONG’s, ou sob patrocínio do Governo, num período em que começava a dar cumprimento ao Plano Nacional para a Igualdade nas comunidades do estrangeiro. CONGRESSISMO NA DIÁSPORA (Os “Encontros para a Cidadania” e os Congressos Mundiais de Mulheres Migrantes). Guardiã da memória do “1ºEncontro”, a Associação “Mulher Migrante” propôs ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, no seu 20º aniversário, a comemoração da efeméride, com um novo congresso mundial. António Braga aceitou a ideia, integrando-a, na execução do Plano Nacional para a Igualdade, com ações faseadas ao longo do mandato, patrocinando não um evento isolado, mas um renascimento do congressismo, e instando a AMM a converter-se em “parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género” (Aguiar e Aguiar, 2009: 109). Entre 2005-2009, decorreram nas grandes regiões de emigração os “Encontros para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens”, articulados com as políticas transversais traçadas, neste domínio, para o país e, pela primeira vez, aplicadas a todas e todos os Portugueses “independentemente de serem ou não residentes em Portugal” (Lacão cit. por Aguiar e Aguiar, 2009: 11). Com a Presidência de Honra de Maria Barroso, a presença do governo (Jorge Lacão e António Braga) e das dirigentes da Associação "Mulher Migrante", a organização local foi confiada a associações femininas - a AMM da Argentina, na América do Sul, a Federação de Mulheres Lusófonas, na Europa, a Cônsul-Geral de Toronto, Maria Amélia Paiva, coadjuvada por uma comissão de associações femininas luso-canadianas, na costa Leste da América, Deolinda Adão, professora da universidade de Berkeley e representante da AMM, na costa Oeste, a Liga da Mulher, na África do Sul. Em 2009, o “Encontro dos Encontros” em Espinho, procedeu, a partir da explanação das relatoras de cada reunião regional, ao balanço global e à propositura de futuras iniciativas, que, com a coordenação da AMM, numa linha de continuidade e num crescendo de ritmo, seriam prosseguidas, entre 2011 e 2015, pelo novo Secretário de Estado José Cesário. Em 2011, na Maia, o III Encontro Mundial traçou o panorama de um século de migrações femininas e as perspetivas do seu devir, começando por evocar o exemplo de Maria Archer e Maria Lamas, rostos do movimento feminista, que com elas sobrevivera no país e se exilara no Brasil e na França. No ano seguinte, a AMM, entre outras temáticas, dedicou um ciclo de colóquios ao associativismo da geração mais velha, com a divulgação da excelência do modelo português de “universidades” ou academias seniores, maioritariamente animadas por mulheres. Em 2013, o IV Encontro Mundial, realizou-se no Palácio da Necessidades, sublinhando, em especial, novas expressões da cidadania, ou seja, aprofundando o domínio em que ao Estado incumbe a promoção da igualdade, e às pessoas a sua projeção no quotidiano. Em 2014, numa série de conferências e colóquios, em parceria com associações e universidades (e.g., Berkeley, San José da Califórnia, Toronto, Sorbonne, CEMRI/Universidade Aberta), olhou-se para “40 anos de migrações em liberdade”, a partir da revolução de 1974, vista, neste campo, como a única verdadeira revolução portadora da liberdade de emigrar e de um primeiro estatuto de cidadania dos expatriados, constitucionalmente consagrado para mulheres e homens, embora, de facto, não vivido ainda em plena igualdade. Na última legislatura, apesar de ter sido adiado o V Encontro Mundial, nos habituais moldes de co-participação com o governo, manteve-se a relação de trabalho em formas de “congressismo”, que atingiram novas audiências - conferências sobre personalidades inspiradoras como Maria Archer, Maria Lamas, Maria Barroso, Ruth Escobar, Natália Correia, figuras nacionais, assim como outras das próprias comunidades, caso de pioneiras do “Encontro de Viana” Malice Ribeiro, Manuela Chaplin, Benvinda Maria, Mary Giglitto, Laura Bulger, Berta Madeira. Em simultâneo, foi relançada a programação dos “ateliers da memória” e “narrativas de vida”, que visavam retratar trajetórias de mulheres de várias gerações, para além do círculo das mais notáveis. O mesmo se diga do ciclo de colóquios sobre “Ação e representação das mulheres na média”, organizados nas Universidades de Dartmouth Massachusetts, Rutgers, Newark, e em Toronto. No seu constante esforço de concertação com múltiplas formas de associativismo, a AMM tem apostado na composição paritária das sessões, levando o debate sobre a reconfiguração dos papéis de género a cenários improváveis, onde, como a experiência comprova, tem perfeito cabimento - da agenda cultural dos festejos do 10 de junho e dos Encontros dos Portugueses do Cone Sul da América às comemorações do Dia da Comunidade Luso- Brasileira e a Bienais de Artes Plásticas (e.g., a Bienal de Espinho, e a de Gaia, que, em 2019, se considerou “uma Bienal de causas”). Nem por isso desvaloriza quaisquer manifestações de ativismo feminino, ONG's (nas quais se incluem as suas delegações e associações filiadas, com autonomia e percursos próprios, de que a associação matriz muito se orgulha), ou movimentos com os quais tem somado colaborações. Levar o associativismo feminino da periferia, onde estava tradicionalmente deslocado nas comunidades, para o centro de influência e cooperação é um passo decisivo em direção à meta da igualdade. Nas últimas eleições para o CCP, a fraca proporção feminina, não obstante se lhes aplicar a Lei da Paridade, veio confirmar quão longe, na esfera do associativismo, estamos dessa meta! Contudo, neste quadro geral dececionante, a inesperada vitória eleitoral das dirigentes das Associações “Mulher Migrante”, na Argentina e na Venezuela, deu um sinal inequívoco da importância do congressismo de pendor cívico, que a AMM tem privilegiado. Aqui deixamos o breve apontamento de momentos chave de uma caminhada, do impulso que a move e do modo como fez valer as suas causas nas circunstâncias que, em tempos irrepetíveis, se lhe ofereceram. Não procedemos à enumeração de um longo rol de publicações e realizações, nem individualizamos as associadas que foram construindo o seu pensamento. Salientaremos, apenas, o nome de Rita Gomes, que, por largos anos, encabeçou e sustentou o projeto e com ele se identificou. É um projeto em que cabem todas as mulheres migrantes, como verdadeiras construtoras de pontes entre nações e culturas - um todo feminino complexo e heterogéneo, que a história da emigração, padronizada no masculino, sempre ocultou, mas que, na realidade, se têm emancipado pelo trabalho e pela abertura à modernidade em sociedades mais igualitárias. Referências bibliográficas: Aguiar, Maria Manuela; Guedes, Graça; e Santiago, Arcelina [coord.] (2015). Entre portuguesas. Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, Lisboa/Espinho: Associação Mulher Migrante. Aguiar, Maria Manuela; Guedes, Graça; e Santiago, Arcelina [coord.] (2014). 1974-2014. 40 anos de Migrações em Liberdade. Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, Lisboa/Espinho: Associação Mulher Migrante. Aguiar, Maria Manuela e Aguiar, Maria Teresa [coord.] (2009). Cidadãs da Diáspora. Ed. Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade, Lisboa/Vila Nova de Gaia: Associação Mulher Migrante.

domingo, 14 de abril de 2019

AMM EM ESPINHO

As singularidades da Associação MULHER MIGRANTE


                                                                                           Manuela Aguiar
1 - A "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade" (AMM) está aberta a todos os que se dedicam ao estudo do fenómeno migratório ou se propõem combater as desigualdades e discriminações, que atingem, de forma especial, as mulheres migrantes e as minorias étnicas. 
Sua divisa: "Ninguém é estrangeiro numa sociedade que vive os direitos humanos". Objetivo principal: aprofundar o conhecimento de realidades variáveis de comunidade para comunidade da emigração, aproximar essas comunidades entre si, promover as condições para a cidadania plena, em cada uma delas. 
Na lista das suas singularidades, destacaremos: o ter nascido voltada para a Diáspora feminina, a partir do país; o não ser uma associação feminina, mas mista; o reconhecer, antes de uma história própria, a importância inspiradora de uma "pré-história".
 De facto, a ideia de constituir uma organização internacional de mulheres antecedera em quase uma década a fundação da AMM. Surgira em 1985, durante o "1º Encontro de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo", promovido pela Secretaria de Estado da Emigração, na cidade de Viana. Esse congresso de mulheres migrantes, absolutamente pioneiro em termos europeus, e, tanto quanto se sabe, universais, dava cumprimento a uma recomendação do Conselho das Comunidades Portuguesas subscrita pela jornalista Maria Alice Ribeiro, de Toronto, uma das primeiras conselheiras a nele ter assento. O "Conselho",  órgão de consulta do governo, formado por representantes do movimento associativo e dos "media" das comunidades, espelhava, então, fielmente a marginalização feminina em cada associação - membro, e era exclusivamente masculino, com a exceção de duas jornalistas, do Canadá e de França.. ...  
 O Encontro de 1985, reunindo cidadãs envolvidas no associativismo e no jornalismo, constituiu, na verdade, uma espécie de "Conselho das Comunidades no feminino". Foi um acontecimento memorável, por ter ultrapassado, em qualidade de reflexão e propostas, as expetativas mais positivas, e, sobretudo, por ter consubstanciado o nascimento às políticas de género para a emigração. Políticas que só viriam a ser desenvolvidas, sistematicamente, duas décadas depois.
 2 - As congressistas, que haviam transformado uma inesperada oportunidade num êxito absoluto, não conseguiram, porém, nos anos seguintes, lançar a sua ambicionada e ambiciosa rede internacional. Em 1993, perante a ausência de políticas públicas para a a igualdade na emigração, assim como de iniciativas das comunidades, algumas das participantes e das organizadoras do mítico "Encontro de Viana" decidiram instituir a AMM, ONG destinada a colocar na ordem do dia as questões da emigração feminina e a repensar o papel das mulheres na Diáspora. Como começar (ou recomeçar) essa tarefa? Com um grande congresso mundial, evidentemente! E onde? Em Espinho, onde éramos residentes duas das "guardiãs" da memória do" Encontro de Viana", e, nessa veste, fundadoras da jovem associação -  Graça Guedes, antiga Diretora do Centro de Estudos da Secretaria de Estado da Emigração e eu, ao tempo responsável por esse pelouro governamental . Avançámos com a candidatura da nossa cidade,  logo aceite consensualmente. Aqui reunimos cerca de 300 personalidades dos cinco continentes. O Encontro Mundial de Espinho, sob o lema "Diálogo de Gerações". foi , até hoje, o maior de todos quantos houve. E conferiu à AMM a credibilidade bastante para se converter em parceira de sucessivos governos no esforço de promover a paridade na vida das comunidades do estrangeiro.
 A colaboração mais estreita situou-se na que podemos chamar uma "década de ouro" na defesa ativa da igualdade, por governos sucessivo, entre 2005 a 2015.  Iniciou-se com os " Encontros para a Cidadania" presididos nos vários continentes pela Dr.ª Maria Barroso, prosseguiu com os Encontros Mundiais de 2011 e 2013, em Portugal, e com os colóquios para a igualdade, realizados em diversos países de emigração, em 2012, 2014 e 2015 - todos organizados pela AMM, em estreita cooperação com a Secretaria de Estado das Comunidades. Cooperação que, de modo menos sistemático, mas com o mesmo espírito, se vem mantendo ininterruptamente.

 3 -  A AMM, como disse, não seguiu o modelo de associação feminina, que é, na Diáspora, o dominante na prossecução de finalidades semelhantes. No estrangeiro, foi sempre mais fácil às mulheres terem visibilidade e influência à frente das suas próprias coletividades do que no associativismo misto, no interior do qual só em anos recentes começaram a aceder aos lugares de direção. Onde, note-se, são ainda uma minoria. 
Todavia, a nível da AMM, já em 1993, as circunstâncias eram diferente. A nossa ligação afetiva ou profissional à problemática da emigração fazia-se a partir da investigação universitária, do serviço público, do jornalismo, de uma visão humanista/feminista de combate às discriminações em razão de sexo, etnia ou de quaisquer outros retrógrados preconceitos. Formávamos um círculo onde mulheres e homens que partilhavam pontos de vista e preocupações. Como dizia um dos pioneiros, o Comendador Luís Caetano, ainda hoje o representante da AMM no Uruguai: "Não é preciso ser jovem para tentar resolver os problemas dos jovens, não é preciso ser idoso para compreender e apoiar os mais velhos.  E não é preciso ser mulher para lutar pela igualdade".
 Todas, todos nós queremos não dois associativismos paralelos, o masculino e o feminino, mas um só (ainda que para aí chegar possam ser necessários organizações somente femininas). A nossa meta é a mesma -  um mundo mais justo e mais igualitário, em que cada ser humano se possa realizar inteiramente -  os estrangeiros, as mulheres, que sem direitos iguais, são como que estrangeiras na sua comunidade ou no seu próprio país! 
Só mais uma palavra, para referir uma outra singularidade, ainda que involuntária: a presença de Espinho nas origens da AMM e ao longo de uma vida já longa. Neste seu  25.º ano, são de Espinho as presidentes de todos os órgão sociais - Direção (Arcelina Santiago), Assembleia Geral (eu mesma) e Conselho Fiscal (Ester Sousa e Sá), mais a Secretária-geral (Graça Guedes). Num momento difícil foram as que disseram "sim" à segunda vida da AMM. Arcelina Santiago acaba de ser eleita para suceder a Rita Gomes, saudosa amiga, líder histórica da AMM, ao longo do último quarto de século..
 De Espinho, em conjunto com associados dos cinco continentes, procuraremos refletir e agir no campo das migrações. Na cidade o "Núcleo" cresce -  o mais recente dos inscritos é o Dr. Lúcio Alberto.
 Somos, assim, também, um exemplo de boas práticas, em matéria de descentralização de iniciativas, competências e poderes, à partida centrados na capital da República.  


 ASSOCIAÇÃO MULHER MIGRANTE – UM MODELO DE CIDADANIA

Graça Sousa Guedes
Professora Catedrática Aposentada da Universidade do Porto
Secretária Geral da AECSMM


            É normal pensar que POLÍTICA significa governo dos homens, administração das coisas e direção dos Estados.
            Mas este conceito é muito mais lato e abrangente.
            Pode ser considerado Arte, Ciência, Ideologia, Filosofia, Ética, Metafísica, Teologia, com diferentes níveis, dimensões e aspetos, que se interligam ou dialeticamente se postulam. O problema reside em saber o que é que verdadeiramente se encontra unido.
            Porque POLÍTICA releva da intuição criadora, do juízo teórico-prático, da perceção das mediações necessárias entre quem governa e a comunidade que é governada, releva também dos diversos corpos que constituem o universo social e estatal que se relacionam com as aspirações que polarizam a vida dos Homens.
            E, assim sendo, POLÍTICA é um FAZER e, sobretudo, um AGIR.
          Esta perspetiva é aliás já muito antiga e inspirada em Aristóteles, que assim define Política: … uma espécie de savoir-faire, de que nem a sensibilidade nem a imaginação podem estar ausentes, embora a prioridade seja atribuída à racionalização tecnológica e à reflexão crítica.
            POLÍTICA será um ponto de focagem de um campo larguíssimo de relações entre governantes e governados; entre as Instituições e a vida real; entre as partes e o todo. E, todos nós, somos a parte deste todo!
            Embora lhe estejam normalmente associadas questões ideológicas e partidárias, teremos de pensar sobretudo em CIDADANIA, que deverá nortear os nossos comportamentos e os nossos relacionamentos, qualquer que seja a idade, o género, a etnia, a religião; qualquer que seja o contexto onde possamos estar inseridos.

            Comecei assim a minha comunicação no II Encontro de Mulheres em Movimento, que aconteceu em Espinho, na Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva, organizado pela Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante em Outubro de 2012 e intitulada Universidade, Política e Cidadania.
            Com base neste minha reflexão, julgo poder afirmar que a nossa Associação pode bem ser definida como um ato de CIDADANIA, expressa nas diversas singularidades que a caraterizam e que tão bem estão agora explicadas neste Jornal pela Drª. Manuela Aguiar, como também de todas quantas nela se têm envolvido.
            Não há estrangeiros numa sociedade que vive os direitos humanos é o seu lema, concretizado na multiplicidade de eventos (mundiais, internacionais e nacionais) realizados ao longo de 25 anos em Portugal, na Europa, na América do Norte e do Sul, em África e muitos dos quais estão relatados em publicações que editamos.
            A ideia colocada em 1985, no 1º Encontro de Mulheres Portuguesas no Associativismo e Jornalismo, realizado em Viana do Castelo e onde estive presente, transformou-se em sonho... , mas que logo se foi tornando realidade pela mão da então Secretária de Estado da Emigração, Drª. Manuela Aguiar com a realização de diversos eventos; após a sua saída do governo, com a fundação da Associação Mulher Migrante.
            Com sede em Lisboa e mais de uma centena de sócias e sócios em Portugal e no estrangeiro,   sempre demos preferência a Espinho para a realização de muitos dos nossos eventos, de entre os quais tenho orgulho em destacar os dois Encontros Mundiais: em 1995 e em 2013. O terceiro Encontro Mundial, em 2011, foi em Lisboa, no Palácio das Necessidades.
            Sendo agora espinhenses todas as presidentes dos órgãos sociais, bem como a secretária geral, tudo será mais fácil para utilizarmos Espinho como palco de muitas das nossas organizações.
            Haja apoio, porque a vontade permanece.



Mulher Migrante – Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade ( AMM)
   Como  foi integrar-me nesta Associação tão singular
                                                                                                          Arcelina Santiago
 Um dia,  penso que em janeiro de 2009 , a Dra Graça Guedes, então Presidente da Assembleia a Municipal de Espinho e também Secretária Geral  da AMM telefonou-me para me convidar a participar numa reunião de preparação do Encontro promovido pela AMM, com o patrocínio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género que  iria ter lugar em Espinho nos dias 6 e 8 de Março. Na verdade,  apesar de estarmos separadas em termos de posicionamento político,  dado que eu era deputada municipal da oposição, reconheci, reconhecemos seguramente que havia mais pontos que nos uniam do que aqueles que nos separavam: a defesa dos direitos humanos, em particular o das mulheres, as questões da emigração, do associativismo e o movimento da diáspora. Aceitei o desafio. Fazer parte da organização deste encontro foi uma surpresa muito interessante. Tive o privilégio de conhecer melhor a Dra Graça Guedes e privar com outra mulher  fantástica, fundadora desta Associação e com uma visibilidade notável pela sua ação extraordinária a nível nacional e internacional principalmente pelo seu papel enquanto Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas que tanto orgulhava todos os portugueses, mas mais ainda os espinhenses que acompanhávamos, de perto, a sua intensa ação- a Dra  Manuel Aguiar! 
  Esse Encontro constituiu  o encerramento dos Encontros para a cidadania - Igualdade entre Homens e Mulheres nas comunidades Portuguesas realizados de 2005 a 2008 e simultaneamente iniciou a comemoração dos 15 anos de atividades da Associação Mulher Migrante. Foi assim o começo. Os anos seguintes, foram de muito trabalho e cumplicidade, sempre na defesa destas causas. Anos de aprendizagem e de vivências muito intensas.
 Destaco entre tantas iniciativas as que Espinho protagonizou, com destaco para  “ As Mulheres da República” organizado pela Dra Manuela, enquanto vereadora da Cultura da Câmara de Espinho, onde algumas mulheres ganharam protagonismo merecido, caso de Carolina Beatriz Ângelo, Adelaide Cabete ou ainda Ana de Castro Osório, figuras representadas por alunas  da fantástica Escola Domingos Capela.  Seguiram-se as homenagens a Maria Lamas, a Maria Archer. Para Maria Archer, criei um guião com base em diversas fontes sobre a jornalista e escritora, denunciadora das condições das mulheres e defensora dos seus direitos e, por isso, remetida ao exílio. Essa entrevista imaginária foi replicada muitas vezes em várias iniciativas da AMM, dramatizados pelas espinhenses Mariana Patela e Inês Pais.
Depois, acontece o Encontro Mundial em Lisboa e, mais tarde, os vários colóquios em Espinho e Gaia e, ultimamente, em Monção sobre “Expressões de cidadania no feminino” e ainda este ano, em abril  o “ Colóquio Portugal Brasil - a descoberta continua a partir de Monção”. Há, na verdade, uma estreita parceria com a  Câmara Municipal de Monção e as Escolas,  em particular a EPRAMI (Escola Profissional do Alto Minho Interior) nossos parceiros nesta caminhada de causas. Com as Escolas e  a Universidade Sénior há um trabalho de continuidade com a iniciativa da AMM – Os  Ateliês da Memória , na recuperação da  identidade da emigração, muito presente nesta região minhota, para ao Brasil e para França. Há desejos de organizar quanto antes o Museu Virtual da Emigração.  

Juntas,  organizamos também as revistas anuais da AMM e envolvemo-nos  em iniciativas nas quais me identifiquei não apenas pelas causas,  mas pelo estilo e metodologia de trabalho desta singular Associação em que cada um/uma  tinha  e tem  a sua voz presente e ativa.
 Foram tempos de intensa aprendizagem, especialmente ligada a estas duas mulheres tão inspiradoras – Manuela Aguiar e Graça Guedes. Já fiz parte da direção anterior e, em agosto fui escolhida para integrar uma nova lista da direção. Substituí a Dra Rita Gomes, a nossa saudosa Presidente que no ano de celebrarmos os 25 anos da AMM nos deixou para sempre. Seguir para a frente com o projeto, continuar a missão seguindo os  desígnios  da AMM será uma forma de a homenagear e dar continuidade aos  25 anos de trabalho desenvolvido - um diálogo contínuo entre o  estudo e o trabalho no terreno, junto das comunidades, um trabalho de cooperação e de solidariedade. E, neste ano de celebração, de homenagem e agradecimento de todas e todos os associados, é também tempo  de reflexão sobre um longo percurso,  de intenso  trabalho em defesa dos direitos humanos já a pensar no futuro. Seguir e honrar o lema desta Associação "Ninguém é estrangeiro numa sociedade que respeita os direitos humanos " continua a estar sempre presente a lembrar-nos que há muito caminho por fazer... 
 Estou certa de que dar continuidade ao trabalho, à missão desta Associação, será a melhor  homenagem que poderemos prestar  à Dra Rita Gomes. Como sua sucessora na Presidência da AMM, espero, com a ajuda de todas/os associadas/os, estar à altura de desempenhar esse papel e dar continuidade ao excelente trabalho que tem sido desenvolvido pela Associação. 
O nosso plano de atividades para 2019 está a ser preparado com muito cuidado, envolvendo muitos parceiros e espalhado por muitos locais: Monção, Espinho, Gaia, Porto, Lisboa, e ainda outros mais, tendo como objective mobilizar a sociedade em geral para as questões dos direitos humanos, com enfoque especial para as mulheres, da lusofonia e, em especial, da  emigração, Vamos neste ano, centrar a nossa ação nos jovens venezuelanos e na sua integração. Sabemos que em Gaia e Espinho há um número muito significativo a merecer especial atenção. 
Para mim é um orgulho e uma grande responsabilidade integrar esta missão que tem, em Espinho,  expressão máxima com a representação de  mulheres envolvidas  nestas causas e na  liderança da Associação.

MM Aguiar Dia da Comunidade Luso Brasileira Monção 2918

A comunidade luso-brasileira é uma realidade humana, histórica, sociológica, linguística, cultural, afetiva, em suma, uma história de famílias, e, com elas, de nações, (enquadradas num Estado, primeiro, seguidamente em dois), que antecede em séculos a sua consagração na esfera do Direito interno e internacional
É esta supra estrutura jurídica, assim como a formação da vontade política que lhe deu a sua arquitetura atual, num e noutro país, que vamos, de uma forma necessariamente sumária, trazer hoje a debate.  
A nível bilateral, as primeiras negociações tiveram lugar nas décadas 50 e 70 do século passado. A elas se seguiu, em 1988,   uma iniciativa unilateral brasileira, que, em sede constitucional levou a um extraordinário aprofundamento do estatuto de direitos políticos dos portugueses, plenamente equiparados a nacionais, sob condição de reciprocidade para os brasileiros. Não se tratou de consagrar a dupla cidadania, mas de lhes conceder todos os direitos da nacionalidade brasileira, na qualidade de imigrantes portugueses. Um inciso à medida das aspirações de uma grande comunidade, a nossa, que nunca se considerou estrangeira no "país irmão". O poderoso movimento associativo, que é seu porta-voz, e muitas personalidades influentes na sociedade e na vida política do país, uniram-se para lutar pelo objetivo de transpor o estatuto de igualdade à sua última fronteira. E lograram alcançar o que se afigurava pura utopia  e que passou a constituir uma absoluta singularidade em matéria de direito comparado. Esperava-se um procedimento convergente, fácil e consensual em Lisboa, no hemiciclo de São Bento. De facto, em  Brasília, no desenrolar do complexo processo de feitura da Constituição de 1988, o capítulo da nacionalidade, fora o mais controvertido, com uma única ressalva: os direitos atribuídos aos portugueses, que foram votados sem discussão e por unanimidade! Contra as expetativas, porém, a resposta dos deputados portugueses não foi nem rápida nem fácil, criado que foi um ambiente partidário de incompreensão e de desconfiança, de polémica e dissenso, que se arrastou por três processos revisionais, comprometendo gravemente o relacionamento entre os dois países.   
Começaremos por uma breve referência aos processos de negociação. a nível governamental, para abordar, depois, mais detalhadamente, a chamada "questão da reciprocidade", que se suscitou com a transposição do processo legislativo para o âmbito parlamentar,
I-1-O TRATADO DE AMIZADE E CONSULTA
A Comunidade luso-brasileira foi formalmente reconhecida pelo "Tratado de Amizade e Consulta",
O "estatuto de cidadania luso-brasileira" consagrado nesse Tratado abrangia o direito de livre circulação, de residência e de estabelecimento dos nacionais de um país no outro e a concessão dos direitos da nacionalidade, que não fossem incompatíveis com as respetivas Constituições. Aplicava-se, de igual modo, aos naturais do continente, das ilhas atlânticas e das colónias, ou regiões ultramarinas, e não exigia a prévia residência no território, pelo que tanto podia ser invocado durante uma estadia transitória (art. 4), como para o livre estabelecimento de domicílio no país (art. 5).  
Um acordo bilateral absolutamente pioneiro, em termos de Direito comparado, fundamentado na realidade de uma comunidade preexistente, que as leis  de um e outro dos Estados Lusófonos se limitavam a subsumir e reconhecer na sua letra. Comunidade alicerçada na língua e nas afinidades culturais, nascidas do incessante movimento migratório, de que se fez a história comum, antes e depois da independência do Reino Unido, até meados de novecentos. Ao longo dos séculos, e, sobretudo, a partir do século XVIII, emigrar era, praticamente, emigrar para a imensa colónia sul- americana. Em vão, o poder régio, desde as Ordenações Filipinas até à legislação limitativa ou proibitiva de oitocentos, (que a República, e a Ditadura continuaram...), tentou travar o êxodo considerado excessivo. Desse "excesso" se fez  percurso e convívio de gente comum, mais igualitário e fraterno do que o que é regra estabelecer entre colonizador e colonizado, entre a Administração e o povo. "Excesso" avaliado no imediato, que, a longo prazo compensou todo o mundo futuro da lusofonia, fazendo a singularidade do Brasil, composto de uma multiplicidade heranças culturais num todo marcadamente luso-brasileiro na língua, na miscigenação e nos afetos. 
Assim o diz, por outras palavras, o Tratado, falando de "afinidades espirituais, morais, éticas e linguísticas", de que resulta "uma situação especialíssima para os interesses recíprocos dos dois povos".
Este notável documento foi assinado no Rio de Janeiro, a 16 de novembro de 1953, pelo Embaixador António de Faria, por Portugal e pelo Ministro das Relações Exteriores Vicente Reo, pelo Brasil.  

I - 2 - CONVENÇÃO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES ENTRE PORTUGUESES E BRASILEIROS (1971)

Em 1969, uma emenda à Constituição brasileira veio reconhecer explicitamente aos portugueses direitos civis e políticos a nível local, estadual e federal, incluindo o sufrágio nas eleições legislativas. Portugal deu a reciprocidade de tratamento aos brasileiros com a celebração da "Convenção de Igualdade de Direitos e Deveres entre   Portugueses e Brasileiros" em 1971
O seu art. 1º estipula que : "Os Portugueses no Brasil e os Brasileiros em Portugal gozarão de igualdade de direitos e deveres com os respetivos nacionais".
Cada cidadão passa a gozar do "Estatuto geral de igualdade",  que tem de ser requerido à entidade competente, pressupondo somente a capacidade civil e a "residência permanente no território, e o "Estatuto especial de igualdade de direitos políticos", que exige a residência principal e permanente há mais de cinco anos e a prova de que não se encontra privado de direitos políticos no país de origem.
Em relação ao Tratado de 1953, constatamos que se avançou no campo da intervenção política, designadamente, com a expressa concessão do direito de voto no que respeita a um órgão de soberania, assim como do acesso à magistratura judicial. Todavia, a Convenção como instrumento de consagração de direitos de imigrantes, de residentes no país, deixa de se aplicar à generalidade dos naturais dos dois países e não prevê a liberdade de circulação e de imigração.
Neste período, note-se, cessara já a emigração em massa de portugueses para o Brasil, e era praticamente inexistente a de brasileiros para Portugal, que se iniciaria somente duas décadas mais tarde. Era, assim, especialmente, às nossas comunidades radicadas em todo o Brasil, que se dirigia a Convenção. Haviam sido elas a reivindicar o estatuto de igualdade, de que se sentiam merecedores, junto das mais altas instâncias do país. Esta realidade explica que tenha sido sempre o Brasil a desencadear os processos negociais, a que Portugal não pode deixar de corresponder - como fez, paradoxalmente, melhor, então, durante a Ditadura do que, depois, em Democracia.
Numa primeira comparação entre o conteúdo do estatuto de cidadania luso brasileira, resultante da Convenção de 71, e o da "cidadania europeia": constatamos que, embora não inclua o direito de livre circulação (aliás,  concedido com fortes limitações dentro da EU…), é equivalente no que concerne aos direitos civis dos imigrantes e vai muito mais longe no campo dos direitos políticos!
A UE ainda não resolveu, e não se vê como e quando venha a ultrapassar o tabú em que está convertida a ideia da partilha de soberania com a abertura à participação dos estrangeiros, cidadãos europeus, na escolha democrática dos seus órgãos de soberania, Parlamento e Presidência da República. Coisa encarada como natural entre Brasil e Portugal, já em meados do século XX (é de salientar que, antes da independência das colónias, a Convenção de 71, tal como o Tratado de 53, englobavam, efetivamente, todo o universo da lusofonia, só depois se limitando ao espaço luso-brasileiro).
 ...
  II -A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE
 II -1  A Iniciativa dos Constituintes Brasileiros
 Em 1988, como dissemos, a Assembleia Constituinte da República Federal do Brasil, tendo com Relator o Constituinte Bernardo Cabral, tomou a iniciativa de ampliar o estatuto de direitos políticos dos portugueses, equiparando-o ao dos brasileiros por naturalização
Nos termos do parágrafo 1º, do art. 12º:
“Aos Portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor dos Brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes aos brasileiros natos, salvo os casos previstos nesta Constituição”
O parágrafo 3º enumera os cargos políticos exclusivos dos brasileiros natos, como são o de Presidente da República e os que estão na sua linha de sucessão, a carreira diplomática, o posto de oficial das Forças Armadas.
Aos portugueses são reconhecidos o direito de voto em todas as eleições, a possibilidade de serem deputados, membros do governo, ou juízes dos tribunais superiores.
No Brasil de então eram já muito significativos os exemplos de vivência concreta do estatuto de igualdade, caso de Ruth Escobar, hoje aqui homenageada, que, tendo sempre exclusivamente a nacionalidade de origem foi a primeira mulher eleita deputada à Assembleia do Estado de São Paulo e a primeira representante do Brasil nas Nações Unidas, para o acompanhamento da Convenção contra todas as formas de discriminação feminina.
Entre nós, tantos anos após a entrada em vigor do mesmo Estatuto, ainda não conhecemos Brasileiros em cargos políticos de idêntico relevo, numa comunidade que cresce desde a década de 90…
II – 2 A Dação de Reciprocidade por Portugal
Ao tempo em que foi conhecido o texto da Constituição brasileira, preparava-se em Lisboa a segunda revisão da Constituição de 1976. Todavia, nenhum dos projetos subscritos pelos partidos cuidava de introduzir no art.15 as alterações exigidas no Brasil para a entrada em vigor do novo Estatuto de Igualdade de Direitos políticos.
Era o primeiro indício da insensibilidade dos partidos face ao alargamento dos contornos da cidadania luso-brasileira. Dos partidos, não dos deputados…. Como antiga Secretária de Estado e Deputada eleita pela emigração fora da Europa (ao tempo eleita pelo Porto, cidade que guarda o coração de Dom Pedro I do Brasil e IV de Portugal), levei o caso à Comissão de Negócios Estrangeiros, onde, de imediato, foi obtida votação unânime para uma recomendação de alteração do nº 3 do art.15, dirigida à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC)
“Aos cidadãos dos países de língua portuguesa podem ser atribuídos, mediante convenção internacional e sob condição de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso à presidência de órgãos de soberania, e das Regiões Autónomas, as funções de Ministro de  Estado, o serviço das Forças Armadas e a carreira diplomática”.
Enquanto na Comissão de Negócios Estrangeiros se verificara a espontânea reação de cada um dos deputados, na CERC eram as posições de cada um dos partidos que prevaleciam. Aquela recomendação foi ignorada. Quando os projetos dos partidos subiram a plenário, foi pela mão de 57 deputados de todos os partidos, a título individual, que a emenda ao art.15 foi apresentada. Entre eles estavam os nomes de Adriano Moreira, Pedro Roseta, Natália Correia, Manuel Alegre, Jaime Gama, Luísa Amorim e até do líder parlamentar do PS (António Guterres) e do Vice.presidente da bancada do PS Pacheco Pereira. A proposta não obteve a necessária maioria de 2/3, devido à abstenção ou ao voto contra de PSD, PS e PCP. A favor só CDS, PRD, independentes, como Corregedor da Fonseca e Helena Roseta, os deputados subscritores e outros, que tiveram a coragem de divergir dos seus partidos.
O eco mediático desta falta de reciprocidade portuguesa teve naturalmente grande impacto do outro lado do Atlântico.
Na revisão Constitucional de 1996/97 a modificação do art.15 não constava do acordo extra parlamentar dos dois maiores partidos, mas, então, já por oposição do PS, completamente isolado na sua recusa de reciprocidade. Mais exatamente, por oposição inultrapassável do Presidente da Assembleia e Presidente do PS, Almeida Santos. Homem que fizera vida e carreira em Moçambique, recusava o reconhecimento de um tal estatuto não só ao Brasil, como, sobretudo, a todos os PALOPS, rejeitando, aliás, mais fortemente o acesso à magistratura judicial do que à participação política
Por isso, de novo, me vi na contingência de apresentar uma proposta, que foi assinada por colegas de todas as bancadas, incluindo alguns notáveis socialistas. Proposta que já só o PS inviabilizou, criando um clima de grande tensão no relacionamento luso-brasileiro, que foi visível na visita de estado do presidente Sampaio ao Brasil – não obstante ele se manifestar um apoiante da reciprocidade, como os seus antecessores Ramalho Eanes e Mário Soare
Foi um risco a correr obrigatóriamente, não um dilema, pois a ignorância desta magna questão constitucional poria da mesma forma em causa o estatuto da igualdade. 

AMMO

Associação Mulher Migrante Ontario (AMMO)
Toronto, Ontario


                                                                                                               Toronto 13 de Dezembro, 2018
Cara Arcelina Santiago
Presidente AMM,
Na sequência do nosso encontro em Toronto no dia 31 de outubro de 2018, reunimos no passado dia  11 de Dezembro, na Galeria dos Pioneiros Portugueses em Toronto, para estudarmos os estatutos da AMM, e iniciarmos  os trabalhos da organização na província do Ontário.
Nesta reunião estiveram presentes eu própria,  Manuela Marujo, Idalina da Silva, Felicidade Rodrigues, Luciana Graça e Ilda Januário. Neste encontro e após análise dos estatutos nacionais, foi decidido formarmos um Conselho de Representantes da Associação, tal como se prevê nos Estatutos da Associação Mulher Migrante, e por sugestão da presidente Arcelina Santiago.
Achamos ser esta a via mais apropriada para o organismo em Toronto, uma vez que temos dentro da comunidade luso canadiana no Ontário especificidades próprias, que cabem bem dentro de um Conselho de Representantes, que chamamos, muito a propósito a AMMO, a Associação Mulher Migrante – Ontário.
A posição de Secretária Geral do Conselho foi posta à consideração das presentes. Eu ofereci-me para desempenhar o cargo durante um ano, decisão que foi aceite. Esta nomeação será revista anualment, e a voluntária a desempenhar as funções, pode ou não continuar no cargo. Ficou igualmente decidido que a direção do Conselho será composta  até 10 associadas, que serão na sua totalidade do sexo feminino. Todavia, a organização está aberta a associados de ambos os sexos, que terão liberdade de propor e participar ativamente nas nossas atividades.
Nesta fase de arranque, a AMMO reunirá uma vez por mês, na Galeria dos Pioneiros Portugueses. As quotas ficaram fixadas em $25 dólares, montante a ser revisto anualmente.  Em termos de programação de ações da AMMO, cada membro do conselho, só ou em colaboração com outras associadas, apresentará um programa a desenvolver no âmbito dos princípios da AMM, que tenha em conta áreas de interesse e ‘expertise’ de cada membro. Dentro desta ótica, e tendo em conta as associadas presentes, arrancarão em 2019 as seguintes atividades.
Idalina Silva: Levantamento para base de dados no âmbito das artes visuais, que comporta artistas luso canadianas, que dentro das várias disciplinas visuais, têm marcado o ambiente artístico no Canadá;
Ilda Januário: Revisão e publicação de um manuscrito de uma mulher, vítima de violência doméstica, e cliente de uma associação de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica, “ABRIGO”.
Manuela Marujo e Luciana Graça: Levantamento para base de dados de publicações de obras literárias de mulheres luso canadianas, assim como teses e trabalhos científicos.
Felicidade Rodrigues: Mulheres e as Questões da Cidadania – sensibilização junto de organizações e escolas, (neste último caso com apoio da Luciana) para as questões da cidadania, participação cívica, direitos e deveres.
Humberta Araújo, coordenação de diversas atividades, apoio às colegas nas suas atividades sempre que necessário, blog, redes sociais, RP. A questão da criação de um blog e a sua manutenção, vai igualmente depender de alguma associada com conhecimento técnico no setor e apoio de todas as nossas associadas, com envio de informações sobre o andamento das suas atividades, fotos e outros, que façam deste espaço um espaço dinâmico e atualizado para ser partilhados pela AMM em qualquer parte do mundo. A periodicidade destas atualizações será decidida atempadamente.
Por questões práticas deve ser criado um email próprio, onde toda a informação relacionada com a AMMO e dirigida à secretaria geral, deverá fluir.  Proponho (a ser sancionada pela Google: ammo@gmail.com). A criação de um logo para a AMMO poderá ser feita através de um concurso que possa abranger as artistas lusocanadianas, algo a pensar e a organizar, (caso esteja interessada) pela Idalina Silva.
Aguardamos agora, a composição completa do nosso Conselho de Representantes, uma vez que nem todas as interessadas puderam estar presentes nesta primeira reunião, para um programa mais completo de atividades.
A AMMO, após ratificada pela presidente Arcelina Santiago, será apresentada ao Consulado em Toronto e oficializada pelo mesmo para ser enviado à Secretaria de Estado das Comunidades.
Em colaboração com as associadas Joaquina Pires (Montreal) e Manuela Marujo (Toronto), a AMMO em parceria com a Peach Gallery, organiza a exposição “Fios de Ternura”, que decorrerá dentro das atividades do Dia de Portugal, em junho de 2019 em Toronto.
No que diz respeito a Montreal, foi levantada a hipótese de ser igualmente criado para o Quebeque, um Conselho de Representantes, como decorre  no Ontário, caso haja interesse no mesmo por parte das associadas e simpatizantes naquela província.
Achamos igualmente importante realçar na documentação a entregar no Consulado algumas atividades que em 2018 foram organizadas em parceria com a AMM, entre elas:
Criação das Academias Seniores de Artes e Saberes (ASAS Toronto, 2008), na presença da Dra Manuela Aguiar durante um Congresso na Universidade de Toronto; Colóquio Vivências da Democracia na Diáspora 1974-2014, na Universidade de Toronto, com as presenças da Dra Rita Gomes e Manuela Aguiar; Simpósio intitulado “Mulheres da Diáspora Portuguesa em Movimento”( 2016), na Universidade de Toronto, com a presença da Dra Manuela Aguiar.

Humberta Araújo

Secretaria Geral, AMMO

MARIA ARCHER E MARIA LAMAS - Salvato Trigo

MARIA LAMAS E MARIA ARCHER: SÍNTESE DE DISCURSOS DIVERSOS NA UNIDADE DA AÇÃO

1. Nascidas no final do século XIX com um intervalo etário de seis anos (Maria Lamas, Torres Novas, 1893; Maria Archer, Lisboa, 1899), estas são certamente duas das mais lídimas e empenhadas representantes, entre nós, do movimento pela dignidade pessoal e pela afirmação social e cidadã da mulher.

2. Não são poucas as similitudes biobibliográficas entre Maria Lamas e Maria Archer: ambas encontraram na literatura e no jornalismo o arrimo mais eficaz, para combaterem por uma causa que só a distorção do patriarcalismo, confundindo a alegoria bíblica com determinações divinas ou naturais, a acomodação na incultura e o marialvismo podem justificar a sua tão tardia consecução histórica.


3. Conhecessem eles Aristófanes (450-386 a.C), o grande dramaturgo da Antiguidade, e tivessem lido, mesmo que apenas extractos, de A Assembleia das mulheres e de Lysastrata, peças em que o autor, preocupado com a reforma de Atenas em crise, evoca a possibilidade de delegar o poder nas mulheres atenienses, “cheias de carácter, de graça, de audácia, de sageza, em que o patriotismo se une à prudência”, tivessem lido tais textos e perceberiam quão fúteis e trágicas têm sido no decurso da história da humanidade as exibições masculinas da razão da força em detrimento do culto feminino da força da razão.

4. Quando a personagem do magistrado pergunta a Lysastrata “Como podereis vós, mulheres, acabar com tanta desordem no nosso país?”, esta responde-lhe sabiamente que usariam para o fazer a experiência que tinham de tecelãs: as desordens e as guerras desembaraçam-se com palavras tal como nós desembaraçamos um novelo de lã, pegando na ponta certa do fio e usando correctamente o fuso. O magistrado, não alcançando a alegoria, impetrou Lysastrata, refutando que as mulheres pudessem ser capazes de combater as desordens, quando não têm qualquer participação na guerra. Lysastra responde-lhe bruscamente: “Eh! miserável, acaso não sofremos nós mais do dobro com esse fardo, nós que, antes, criamos os filhos para vê-los partir para o exército?”


5. O desrespeito da mulher como fonte de vida, que afirma pelo seu direito à maternidade, incultamente transformado pelo homem num dever de procriação, tem, desde Aristófanes, pelo menos, marcado a educação ou, melhor , a pedagogia, no rigor etimológico dessa palavra que, originalmente, como se sabe, significava tomar conta de crianças e orientá-las para a vida futura no respeito pelos valores do passado. Exigir da mulher que ponha no mundo filhos, para satisfazer o instinto predador dos que fazem as guerras só para exibir o poder, é arrogar-se marialvamente como proprietário da existência alheia, vendo-a como materialidade transacionável e não, como a confirmação de que o ideal das criaturas humanas, expulsas do mítico paraíso, é serem companheiras e não, súbditas.

6. Companheiras, na acepção etimológica e na compreensão semântica daí derivada, isto é, companheiro/a é aquele/a com quem partilhamos o pão (cum+ pane-), assim cumprindo o desígnio dos humanos de, biblicamente, ganhar o pão com o suor do rosto.


7. Foi certamente por não terem encontrado nos homens de quem se divorciaram essa compreensão e dimensão de companhia que Maria Lamas e Maria Archer mais terão desenvolvido a sua responsabilidade social de lutar pela dignidade da mulher e pelo seu direito à igualdade cidadã com o homem.

8. O casamento, aos 17 anos, coincidentes com a proclamação da República, com o tenente de cavalaria, Ribeiro da Fonseca, foi para Maria Lamas a porta da entrada na diáspora, acompanhando o marido na comissão militar para a Huíla (Angola), antes de experimentar a amargura do exílio. Os três anos de vivências de África, donde regressou em 1913, inspiraram-lhe a novela Confissões de Sílvia, com que iniciaria a sua vida literária, sendo também motivação para a escrita do romance Diferenças de Raça, publicado em 1924.


9. A implantação da República terá sido para Maria Lamas um dos acontecimentos mais impressivos da sua vida, plantando-lhe no fulgor da juventude as sementes éticas com que conduziria a longa carreira de jornalista que iniciou, pela mão do escritor Ferreira de Castro, em O Século, de Lisboa, onde entrou, no regresso de Angola, para dirigir por vinte anos a revista do lar Modas & Bordados, onde assinou a coluna “O correio da Tia Filomena”, espaço pseudónimo para falar da condição feminina em Portugal.

10. Tia Filomena foi um dos pseudónimos com que começou a sua militância na causa da dignificação feminina, tendo usado também o pseudónimo Rosa Silvestre, para assinar dois livros para a infância, Caminho Luminoso e Para Além do Amor, o pseudónimo Maria Fonseca e o pseudónimo Serrana d’Ayre, para publicar poesia.


11. Essa militância levava-a a conjugar a sua actividade de jornalista com a de dinamizadora cultural, ora organizando exposições dos teares do Minho ora de tapetes de Arraiolos fabricados pelas reclusas da cadeia das Mónicas que, assim, aliviavam as suas condições de detenção.

12. Envolvida ao mesmo tempo nos movimentos associativos femininos, Maria Lamas será eleita, em 1945, presidente do Conselho Nacional das Mulheres, associação fundada na I República que o Estado Novo perseguia sem descanso. Esta função obrigou-a a viajar por todo o país, o que lhe permitiu reunir informações e experiências para a escrita do livro As Mulheres do meu País, publicado em 1948, ano anterior ao da sua participação activa na campanha à presidência da República do general Norton de Matos, sofrendo, por isso, a primeira das várias detenções que o regime de Salazar lhe impôs.


13. A este título seguir-se-ia, quatro anos depois, As Mulheres no Mundo, o que a tornou membro do Conselho Mundial da Paz, a partir de 1961, ano em que partirá para oito anos de exílio em Paris, onde conhece Marguerite Yourcenar, de quem traduziria As Memórias de Adriano, e onde, da janela de seu quarto no Hotel de Saint-Michel, apoiará os jovens do Maio de 68, passando-lhes baldes de água, para eles mitigarem os efeitos dos gases lacrimogéneos.

14. Ainda em Paris, adoptará novo pseudónimo, Helena Torres, sob o qual transmitirá pela Rádio Moscovo mensagens do Conselho Mundial da Paz aos portugueses, antes de regressar a Portugal na “primavera marcelista”, e, sempre solidária, se disponibilizar para testemunha de defesa da romancista Maria Isabel Barreno, no processo das “Três Marias”, quando já começavam a soprar tenuemente os ventos de Abril.


15. Octogenária, mas com o vigor da causa da liberdade por que longamente se bateu, apoia o 25 de Abril e é com justiça agraciada com a Ordem da Liberdade que junta à de Santiago da Espada que, em seu tempo, Óscar Carmona lhe tinha entregado. A dez anos do fim da sua caminhada, Maria Lamas via recompensada a sua militância pela igualdade dos direitos cívicos que defendeu com afinco na sua escrita literária e jornalística.

16. Só na pseudonímia Maria Archer não acompanhou Maria Lamas; na militância pelos direitos cívicos das mulheres, sim. Na pseudonímia, encontraríamos uma companheira para Maria Lamas em Irene Lisboa que, nascida um ano antes, publicaria bem mais tarde, em 1936, o seu primeiro livro, Um dia e outro dia…Diário de uma Mulher, com o pseudónimo João Falco com o qual também escreveu na revista Presença, depois de aí se estrear, quando ainda vivia na Suiça, com o pseudónimo Mara. Irene Lisboa usará ainda os pseudónimos Maria Moina e Manuel Soares, este sobretudo em ensaios de pedagogia, área em que também se destacou.


17. Foi nas páginas da Presença que José Régio, depois de chamar a atenção para a escrita de Maria Archer e de Fernanda de Castro, outra das escritoras da causa feminina tocadas pela diáspora e pelo sortilégio da África, se referiu àquele primeiro livro de Irene Lisboa e a um segundo com o título Outono havias de vir nos seguintes termos: “ Lê-os a gente e pensa: Mas porque é que todas as mulheres não têm escrito assim? Não escrevem assim?”

18. Não se estranhe, por isso, que Adolfo Casais Monteiro, em 1956, tenha escrito de forma tão encomiástica sobre Irene Lisboa: “É contudo o nome de um grande escritor – o da maior escritora portuguesa de hoje, sem discussão possível.” Mas estranhe-se que Casais Monteiro tenha passado ao lado da obra vasta e notável de Maria Archer, até porque coincidiu com ela no tempo e nos motivos do exílio brasileiro, que a escritora iniciaria em 1955.


19. Maria Archer, como deixei dito, tal como Maria Lamas, viverá, na companhia dos pais, na adolescência, três anos na Ilha de Moçambique (1910-1913) e, na juventude, dois anos na Guiné, em Bolama e em Bissau(1916-1918). A Moçambique, voltará já casada, entre 1921 e 1926, ano em que acompanhará o marido para Faro, donde partirão para viver em Vila Real de Trás-os-Montes até 1931. Terminados os dez anos de casamento, Maria Archer regressa a Lisboa, para junto dos pais, mas estes viviam, então, em Angola, para onde a jovem divorciada seguirá, juntando-se-lhes, em 1932.

20. Em Luanda, viverá Maria Archer por quatro anos, tendo-se estreado aí literariamente, em 1935, escrevendo um livro de novelas e de contos, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim Graça. Nesse ano, terminará também a sua vivência africana e já em Lisboa escreverá o romance África Selvagem(1935) com que se estreou na literatura colonial portuguesa e que lhe mereceu de vários críticos elogios como: “excepcional revelação literária”; obra suficiente “para impor Maria Archer como escritora, para consagrar os seus dotes de narradora perfeita”; “maravilhoso repositório do folclore negro”.


21. A esse romance de estreia seguir-se-ão Sertanejos(1936), Angola Film(1937), Viagem à Roda de África(1938), Colónias Piscatórias em Angola(1938), Caleidoscópio Africano(1938) e Roteiro do Mundo Português(1940). Tal como Maria Lamas, Maria Archer escreveu também para crianças, tendo ganhado o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 1938, com o livro Viagem à Roda de África. Escreveria ainda para o público mais pequeno dois ensaios, para que aprendessem a história de Portugal de forma lúdica. A África voltará, mais tarde, à ficção de Maria Archer que, entretanto, escreve o romance Aristocratas (1945), cujas história e personagens têm muito de autobiográfico, o que levou seus pais a romperem com ela, por se sentirem pejorativamente retratados.

22. Este romance vinha afinal confirmar a forma audaciosa como Maria Archer militava a favor da causa da dignificação da mulher portuguesa, o que levou João Gaspar Simões a comentar: “Não conheço mesmo outra escritora portuguesa que à audácia dos temas e das ideias alie uma expressão tão enérgica e pessoal. O seu estilo respira força e solidez.”
23. Aliás, é a própria autora, já depois de ter experimentado a perseguição à sua escrita e aos seus livros, dois dos quais chegaram mesmo a ser apreendidos – Ida e Volta duma Caixa de Cigarros e Casa sem Pão – que, em 1952, dirá da sua obra até então produzida: “A minha obra literária tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher”.

24. A rebeldia do comportamento político e da escrita com que a manifestava, exibida no empenhamento com que acompanhou, em Lisboa, o julgamento do capitão Henrique Galvão, seu amigo e como ela africanista e opositor do regime, empurrou-a naturalmente para o exílio no Brasil, onde chegou em Julho de 1955. É a própria Maria Archer que, em entrevista ao Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em Janeiro de 1956, conta os motivos por que saiu de Portugal: “ Vim para o Brasil, tendo chegado no dia 15 de Julho de 1955, porque já não podia viver em Portugal. A ação da censura asfixiou-me e tirou-me os meios de vida. Apreenderam-me dois livros publicados, assaltaram-me com policiais a casa e levaram-me um original que ainda estava escrevendo, violência inédita em países de civilização europeia.”


25. Chegada ao Brasil, como tantos outros exilados portugueses, entre os quais Casais Monteiro, Carlos Maria Araújo, Sidónio Muralha, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Mário Henrique Leiria, iniciou, por assim dizer, a sua fase de jornalista, colaborando no célebre jornal O Estado de São Paulo. A actividade jornalística não a impediu de continuar a sua obra literária e ensaística. E assim é que, em 1959, publicará Os Últimos Dias do Fascismo Português, livro que lhe foi inspirado pelo julgamento já mencionado de Henrique Galvão. Seguem-se Terras onde se fala Português , África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963).

26. Respigando e aumentando algumas das passagens do Roteiro do mundo português, que escreveu em 1940, como alusão à exposição colonial do mundo português desse ano, Maria Archer escreverá Herança Lusíada, livro valorizado pelo prefácio de Gilberto Freyre, no qual destaca o “talento literário”, a “qualidade da observação”, o “poder de análise”, o “gosto pelo estudo do que do ponto de vista europeu é exótico, pitoresco ou bizarro.” Com este livro encerrou-se praticamente a obra literária de Maria Archer, que o 25 de Abril de 1974 não trouxe a Portugal. Para aqui voltou apenas em 1979, doente, para vir morrer, praticamente na miséria, num lar em Marvila, em 1982.


27. Quem conheça a vasta obra de Maria Archer acompanha convictamente o comentário resumptivo que dela foi feito: óptima romancista e um valor inigualável na literatura feminina do século XX.

28. Os sinos que por ela dobraram, em 1982, e por Maria Lamas, no ano seguinte, tinham o mesmo som daquele “augusto bronze” garrettiano, que nos tange na memória a odisseia da nossa diáspora da qual estas duas mulheres, agentes activas do resgate português da cidadania feminina, foram símbolos maiores.


29. No caso de Maria Archer, não lhe reconheceu a pátria, como deveria ter reconhecido, o seu bom combate pela liberdade e pela igualdade da mulher, porque a pátria, tantas vezes, faz que nos sintamos, como escreveu Irene Lisboa, em O Pouco e o Muito: “Cada um de nós é um ilhéu – ilhotas flutuantes em mares profundos e longuíssimos de solidão. De abandono.”

30. Esse abandono, a que Maria Archer foi votada nos últimos anos de vida, denunciou-o o poeta moçambicano Sebastião Alba no poema “À morte de Maria Archer”:

“Esta melancolia andou desocupada

Que há sempre um guizo mudo
O do cordeiro que seus pastos nos evocam

Direi da minha vida
Não é plena mas contém-me
E ao devaneio em que lhe sou infiel
Já sem nenhum recato

Da sua
Que uma escápula no asilo
Lhe suspendeu pela gola a sombra.”

31. Façamos, então, a síntese dos discursos diversos de Maria Lamas e de Maria Archer, que se cruzaram em espaços e tempos, que reclamavam unidade de acção na busca da igualdade social e da cidadania plena da mulher enquanto mátria, donde a pátria deriva e se alimenta dos filhos que a tornaram, que a tornam ditosa, como cantou o nosso poeta maior!

32. Libertemos, pois, a mater dolorosa e tornemo-la mater gloriosa, para que a vida não seja punição, não seja dominada pela violência, pela dor, antes, fruição de companhia e partilha do pão. Se não, a diáspora não terá valido a pena!


Porto e Forum da Maia, 24 de Novembro de 2011.

Salvato Trigo