O nome de
Maria Helena Vieira da Silva andará sempre associado à diáspora portuguesa,
penitente percurso em que Mulher e Pintora assumem a cumplicidade e a comunhão
fraterna inviabilizadoras de destrinça. De facto, a pintora não existe sem a
mulher ou, parafraseando Heidegger, “o artista é a origem da obra. A obra é a
origem do artista. Nenhum é sem o outro”.
Suiça,
Paris, Rio de Janeiro, o mundo são lugares onde – onde sente saudades pátrias e
onde reaprende a viver. Artista e mulher carrega o estigma do isolamento mesmo
na sua terra que se lhe tornou madrasta e muito tardiamente reconheceu a sua
genialidade.
A migração
foi, porventura, a sua evasão, como aconteceu com outros artistas e escritores
portugueses com quem se relacionou. Refiro-me a Sophia e a Agustina que, sem
abandonarem o solo pátrio, fogem, pela escrita para outras paragens sempre
carentes do regresso. Um outro jeito, não menos doloroso, de migrar.
Em Longos dias têm cem anos, a propósito de uma visita a casa de Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís escreve: “Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal. […] Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia” (Bessa-Luís, 2009: 15-16). E afastando-se, de imediato, da vertente artística para a humana acrescenta: “A Sophia era um caso – uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso – incerteza apaixonada. Vieira era um caso – uma mulher justa” (Bessa-Luís, 2009: 16).
Estas foram as três mulheres que,
incorporando o mistério da criação, marcaram artística e culturalmente o
Portugal do século XX pois perseguiram com uma notável akribeia o conciliábulo ética / estética através de uma produção
assinalável, em termos quantitativos e qualitativos, instaurando assim
dinâmicas salvívicas. De facto, “se todos os artistas da terra parassem durante
umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música,
fazia-se um deserto extraordinário” (Bessa-Luís, 2008: 20). É justamente esse
deserto que, por elas e com elas, nunca aconteceu dando-nos conta, como deram,
de que “O ponto de partida de todos os sistemas estéticos deve ser a experiência
pessoal de uma emoção particular” (Bell, 2009: 22). Assim conceberam obras que
provocam o que Clive Bell denomina “emoção estética”.
Colho Vieira da Silva como
protagonista e convoco os olhares de Agustina e de Sophia, que sobre ela
recaem, de forma a relevar uma tríade feminina enformadora de uma diáspora
física e mental.
Maria Helena, a pintora, a “mulher
justa” a que alude Agustina que, sobre ela escreveria ainda: “Falava pouco.
Olhava, sobretudo. Olhava com uma intensidade fria, como se estivesse a
atravessar um rio e se dividisse entre o perigo e o prazer. O fundo arenoso
onde se recortavam peixes prateados dava-lhe aquela expressão suspensa e
maravilhada; mas, de repente, o remoinho da água trazia a noção da forte
corrente, e, um pouco mais, era a dúvida, um temor concentrado, a razão
alertada. O rosto exprimia angústia, os olhos abriam-se mais e ganhavam uma cor
cristalina” (Bessa-Luís, 2008: 303-304).
Ora este retrato de Agustina ao
convocar a linguagem do olhar para caracterizar Vieira da Silva vem, muito
justamente, ao encontro da ideia de que, e seguindo os ditames de Dilthey
(1994), o potencial criativo, longe de se instituir um processo psíquico
especial, emana do quotidiano, do contracto intrínseco entre o ser humano e as
suas vivências, de opções definidas e assumidas perante as vicissitudes da vida
que ora espanta, ora atemoriza
A arte de Maria Helena Vieira da
Silva teve a peculiaridade de, citando Malraux, “transformar a vida em destino”
instituindo-se viagem gerada na legítima emigração de quem procura o espaço
favorável à sua expressão sem nunca negligenciar a sensibilidade marcada pelas
suas raízes.
O seu génio pessoal encontrou em
Paris o meio adequado à libertação, à ruptura com uma tradição figurativa sem
negligenciar, contudo, a praxis
essencial de analogia com a realidade. É aí que, durante a década de 30,
integra a geração da Nova Escola de Paris
mantendo, contudo, alguma independência de certos –ismos de uma Europa
efervescente.
Estava
lançado o destino de Maria Helena na sua ligação ao abstraccionismo propondo
obras onde era clara a fragmentação de motivos figurativos num processo
destrutivo das formas significantes em demanda do onírico. Refiro uma arte que, privilegiando
formas e cores, nega temas e figuras e bane o compromisso com a realidade. Sou,
contudo, cauta ao
pensar o abstraccionismo em Vieira da Silva que a própria considera, em
entrevista concedida em 1978, ter sido “uma escolha difícil, mas tinha que
partir de dentro, devia ser uma escolha racional. Para pintar pensando com a
cabeça e fazendo com a mão”. Tinha consciência, Maria Helena, de que “a obra de
arte reflecte-se na superfície da consciência […] [e que] a análise dos seus
elementos constitui uma ponte em direcção à vida interior da obra” (Kandinsky,
2006: 25-26). O seu percurso culmina na abstracção a partir da figuração. Os
pontos, elementos originais da pintura e as linhas oriundas dos seus
movimentos, entram nos planos que têm no quadrado a sua forma esquemática e
original, jogando-se em vibrações dramáticas de modo a “encontrar a vida,
tornar sensível a sua pulsação e verificar a ordem de tudo o que vive”,
evidenciando “que é um trabalho de síntese que conduz às revelações exteriores”
(Kandinsky, 2006: 143). Pode-se afirmar que na
sua pintura “la catégorie spatiale a basculé la catégorie temporelle. Espace et
temps ont révélé leur étroite liaison” (Vallier, 1988: 21). “Depois, Maria Helena
era também consciente de que a sua arte era o repositório de experiências
vividas – onde se destaca a emigração para França – e de uma saturada atenção
aos clássicos” (Ponce de Leão, 2011).
Uma “mulher justa” (Bessa-Luís,
2009: 16) lhe chama Agustina, uma “mulher […] que sabe, duma maneira rápida e
sem drama, o que é aceitar o mundo: é perder o direito à inocência”
(Bessa-Luís, 2008: 187). Talvez por isso abandona a Europa no deflagrar da 2.ª
Guerra Mundial. Abandono físico porque o país e a cidade acolhedores – Brasil,
Rio de Janeiro – recebem com ela a amargura que qualquer guerra provoca. É aí
que pinta “Le Désastre” (1942), representação horrenda do conflito europeu,
tumultuária, titânica e “vazia crucificação, onde o acento futurista dum
Rossolo parece petrificar-se em gente feita de estilhas, sob um céu
estilhaçado, ou hangar, estrutura mecânica de um mundo absurdo” (França, 1988:
7). É no Brasil, mas com o pensamento na Europa que Maria Helena, através deste
quadro, bem como de “Le feu” (1944) e de “Histoire maritime-tragique” (1944),
faz a iniciação da sua obra maior. “Le Désastre” (1942) é “a última pintura
possível de uma época, de um clima pictural, e a primeira a anunciar outra
época e outro clima, e a propor-lhe, pelo absurdo, uma negação de figuração em
si própria sensível, mas terminal”
(França, 1988: 8). Trata-se de uma pintura de agouros em que o encontro da
artista com o real se faz de inquietações, interrupções, factos e memórias.
Retomando a figuração pinta os movimentos terríveis da guerra numa linguagem de
occídio só suplantada pelo “Guernica” de Picasso.
Maria Helena demanda, contudo, a verdadeira
cidade dos homens e é pelo paisagismo ou naturalismo abstracto que se liga à
cultura dos espaços em que viveu – França, Brasil, Portugal – inequivocamente
testemunhados na diáspora de uma vida, de uma obra. As suas telas espelham a
cumplicidade que não o corte com as modalidades tradicionais da figuração em
sistemas progressivos sem que com isso pactuem com a utópica ablação do real.
Contornando hierarquias formais, cria os seus valores exclusivos e emana-os num
idiolecto próprio que, fraccionando os espaços, lhes confere uma fluidez e
infinitude metafóricas que demandam a ambiguidade. Nesta ambiguidade constrói
espaços cheios e vazios que convivem na globalidade do quadro conferindo-lhe
movimento. Entre o delírio e o rigor, geometrias várias insinuam os diferentes
sentidos, enquanto processos pictóricos sugerem distâncias e movimentos.
Enredam-se telas e fios tecidos em
memórias longínquas de Portugal, Brasil e França. E há portas e pontes, gares e
baptistérios, bibliotecas e, muito particularmente labirínticas cidades. É o
mundo pictórico das linhas verticais e horizontais estabelecedoras do
dialogismo tempo / espaço na construção do onírico. Aí se encontram as
“Bibliothèques”, por ventura o seu motivo mais obsessivo (1947-1974), arquivo
de memórias, arquivo do mundo no sentido borgeano do termo. Arquivo do tempo
também. Camões, Pessoa, Sophia, René Char, o tal dos presságios, comparecem
como pontos matriciais de uma trajectória em construção. É através desses lugares
de arquivos de experiências e memórias que ensaia o acesso às cidades, às suas
cidades que se vão descobrindo na tela num lento processo de construção de
espaços múltiplos. Depois surge o traço que fende os limites, estilhaça a
unidade agilizando a bidimensionalidade numa demanda polissémica. Assim
“estratigrafiza a paisagem, desmultiplica construções, arruamentos, filamentos,
estruturas, movimentos. Como se a cidade vista fosse apenas uma teia de
sugestões erguida com a sabedoria de Ariadne” (AA. VV., 2010: 30). “Maisons
Grises” (1950), “Blanche” (1958), “Lisbonne” (1962), “Palais des glaces”
(1965), “Gaya” (1971) são apenas algumas das telas-teia que encerram catedrais,
bibliotecas, prédios, jardins, povoamentos de labirínticas cidades.
É delas que se parte num trajecto
que vai do deslumbramento perturbador e inquiridor face ao próprio acto de
pintar, até ao esplendor encantatório de um universo que a pintora vê como locus obsidente e a que abre toda a sua
disponibilidade interior com vista à reedificação.
A ideia de diáspora – voluntária e
involuntária – é filão matricial da pintura de Vieira da Silva. Há uma
permanente demanda de novos horizontes na determinação com que pinta o ausente
como se estivesse presente, numa manifesta sede de infinito.
A esta obsessão pela viagem, a este
desejo de transcendência arduamente tecido cabe a noção de heterotopia a que
alude Foulcault. Trata-se de uma procura dos “lugares que estão fora de todos
os lugares” com a capacidade e o poder “de justapor em um só lugar real vários
espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”
(Foulcault, 2001: 418). Este desejo, esta procura dos espaços encontra eco na
obra de Sophia, a tal mulher “que tem a cortesia de parecer vulnerável.”
(Bessa-Luís, 2009: 16),
com quem Maria Helena privou e
comungou afinidades de lutas e vivências. A sua pintura projecta-se em poemas
labirínticos onde observador e pintor, poeta e leitor se fundem e confundem no
espaço insaciável e sempre iniciático apenas com paralelo na teia de Penélope.
Assim escreve Sophia (2004a: 68) em “Maria Helena Vieira da Silva ou o
Itinerário Inelutável”
Minúcia é o labirinto muro por muro
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia –
Itinerário é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável –
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia –
Itinerário é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável –
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens
Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto
Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio.
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio.
Processo de
construção labiríntico, obsessivo, sofrido. Sobre este poema diz Agustina: “é
uma das mais belas poesias de Sophia de Mello Breyner, em que ela deixa
conhecer a fascinação: uma certa rigidez da forma acentua a distância, e
assegura a imutabilidade” (Bessa-Luís, 209: 92).
Uma outra diáspora.
Os mesmos temas e as mesmas formas ligam as duas artes e encorpam o movimento
duplo de abertura e fechamento que remete para tudo de quanto paradoxal tem a
arte. A voz poética reconstrói uma paisagem interminável de espaços conhecidos
mas não particularizados por entre os quais o vazio espreita. Os poemas de
Sophia e os quadros de Maria Helena remetem para a concomitância de itinerários
paradoxais, como paradoxais são as figuras que os percorrem – incessante peleja
pela libertação do olhar e do pensamento num também incessante fazer e desfazer
da teia.
Também em “Tríptico
ou Maria Helena, Arpad e a pintura” (Andresen, 2004b: 10) se presentifica o
carácter pictórico da poesia de Sophia bem como a afeição pela arte de quem, de
alguma maneira, provoca a já referida “emoção estética”:
I
Eles não pintam o quadro: estão dentro do
quadro
II
Eles não pintam o quadro: julgam que estão
dentro do quadro
III
Eles sabem que não estão dentro do quadro:
pintam o quadro
Sophia aproxima-se
aqui de um geometrismo onde os actores, sendo também espectadores, se desdobram
entre dois espaços e duas funções. O dentro e o fora convergem na tela numa
clara alusão ao período em que o casal viveu no Rio de Janeiro. São dessa
altura numerosos auto-retratos bem como o que poderei chamar um processo
meta-pictural uma vez que Arpad, aquele que “pinta como quem ama a realidade –
submetendo-a a puríssimos fragmentos”, (Bessa-Luís, 2009: 21), pintou Maria Helena
na feitura de telas, que fazem parte do seu espólio, numa curiosa troca e
acumulação de papéis.
Há na arte de Vieira
da Silva uma projecção subjectiva da sua experiência geracional, instituída
pelo trabalho, o dever, a pesquisa que demanda campos heterotópicos de igual
modo observados em certos poemas de Sophia que acabam por questionar o poder do
espaço. O passado ensina “que a evolução da humanidade consiste na
espiritualização de numerosos valores. Entre estes valores a arte ocupa o
primeiro lugar” (Kandinsky, 2008: 48), sobretudo se, como é o caso, existe uma
relação entre a obra e a emoção que a gerou no artista ou a emoção que ela é
capaz de fomentar no espectador / leitor. Nas telas-teia de Maria Helena e nos
poemas-teia de Sophia “adivinham-se catedrais, labirintos, bibliotecas,
jardins, vendavais, arrebatamentos de estio” (AA. VV. 2010: 32) produtos de
itinerâncias físicas e mentais.
Depois há o olhar de
Maria Helena, já apreciado por Agustina e também referido por Sophia (Andresen,
1994: 31):
Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida
A pintora não existe
sem a mulher. Atenção à arte. Tal como Athena pugnou por Ulisses, Maria Helena
pugnará por ela na demanda de Ítaca. Uma Ítaca perdida na migração e no exílio
mas achada pela razão (“Athena”), pela sabedoria (“coruja”) e por muito muito
trabalho que para a pintora foi “um baptismo e uma extrema-unção […] a sua fé e o seu sacramento maior” (Agustina, 2009: 172). De facto, a leitura das suas
composições, para além do prazer estético, provoca a percepção de um voluntário
hard labour que desconstrói, para de
novo edificar, a paisagem citadina. “Quando Maria Helena pinta ‘como se
obedecesse a uma força superior’, a paz é um absurdo, como a realidade concreta
é um absurdo que é preciso recrear para que se torne afecto do homem, obra sua”
(Bessa-Luís, 2008: 22). Deve-se-lhe o fenómeno geracional genesíaco do
esplendor do abstraccionismo português, que em muito influenciou nomes como os
de Manuel Cargaleiro e Mário Cesariny.
A quebra de identidade, a orfandade
cultural, o desenraizamento afectivo que a sua condição de migrante podia
carrear foi contrariada pela arte que, pospondo molduras jurídicas e
institucionais, se tornou elemento coadjuvante de uma atitude de denúncia ou de
chamada de atenção mais branda para uma visão holística da realidade. Por outro
lado, é também à sua condição migrante[1] que
Maria Helena deve muita da sua habilidade artística gerada em experiências
vivenciais, em aprendizagens diversas nos espaços que percorreu como refere
Agustina: “Deixou Portugal Vieira da Silva por esperanças que as montanhas
parecem cortar de um lado e conceder o mar pelo outro. São assim os
portugueses, curiosos do que a terra lhes proíbe e ansiosos do mar que lhes
promete. Boas terras pisou Vieira da Silva; escolheu-as decerto para que o contentamento
andasse a par com o trabalho”. (Bessa-Luís, 2009: 135-136)
De facto, “aquele que emigra é como
o que vai ao fundo dos abismos onde nem a morte chega sem medo, para daí trazer
uma imagem amada, a imagem da terra em que se criou. Passa-se muito fora de
Portugal para que Portugal seja mais nosso” (Bessa-Luís, 2008, 93). Talvez por
isso seja sistemática a Presença de
Portugal nas telas de Vieira da Silva. Assim, o elemento paisagístico da
terra pátria presentifica-se em obras como “Pour Expliquer Sintra à Arpad”
(1932), “Alentejo” (1960) “Porto” (1962), “Vieux Lisbonne” (1968), “Lisbonne
Bleue” (1969); o pendor folclórico-etnográfico é visível em “Santo António de
Lisboa” (1949) ou “Arraial” (1950); num magnífico díptico – “A Poesia está na
Rua I / II” (1974)[2]
–, evocador da Revolução dos Cravos
surge uma outra cidade, espaço da liberdade colectiva que a poesia convoca. Um
Portugal policromo, perfeitamente identificado no seu “Testament” (S/A, 1994,
s/p) onde se pode ler:
Je lègue à mes amis
[…]
un vermillon pour faire circuler le sang
allègrement
un vert mousse pour apaiser les nerfs
un jaune
d’or : richesse
[…]
“A
grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade.
Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro demoníaco. Todo o artista
exagera ou dilui, aviva ou simplifica” (Bessa-Luís, 2008: 22). Poesia, prosa e
pintura com nome de mulher e “para a mulher, não existe a noção de criação, ela
está dentro do mistério, faz parte dele” (Bessa-Luís, 2009: 168). Cá dentro ou
lá fora, migrantes reais ou ficcionais, Maria Helena, Sophia e Agustina afagam
todo esse mistério que envolve a diáspora, “tendência fatal dos portugueses que
se manifesta desde o primeiro bocejo” (Bessa-Luís, 2008: 94). Podem olhar, sem
parcimónia umas para as outras; são conscientes de que a arte serve “para
abolir o absurdo” (Bessa-Luís, 2009: 22) e que, tal como refere Picasso – “Pinto igual que outros escriben su
biografia. Los cuadros terminados son las páginas de mi diário” –, configura a escrita
do eu.
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Agustina. Dicionário Imperfeito.
Lisboa: Guimarães Editores, 2008..
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Outros espaços. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de
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Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2005.
KANDINSKY,
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Lisboa: Edições 70, 2008.
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Edições 70, 2006.
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Arpad Szenes e Vieira da Silva. Lisboa: Fundação Arapad Szenes – Vieira da
Silva, 1994.
PONCE
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(Consultado em 10.04.2011).
VALLIER,
Dora. Pour Vieira da Silva 1988. Colóquio
Artes, n.º 77. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 21.
[1] Opto por esta denominação em
detrimento de e/imigrante, por me parecer que, afinal, o emigrante se torna
imigrante no país de acolhimento, concitando em torno de si os dois conceitos,
ainda que os seus direitos e deveres tenham, naturalmente, características de
índole diversa, direi mesmo, quase antagónicas.
[2] Sobre esta obra, escreve Agustina
(2009, 78): “Quando Sophia Breyner, então deputada socialista, pediu a Vieira
para que ela fizesse um cartaz para festejar o 25 de Abril, o resultado foi
enigmático. Maria Helena pintou, conforme a sua primeira inspiração, algo como
uma igreja em ruínas. […] Nesse momento, em que devia reportar-se a um festim,
como Sócrates convidado a comparecer em casa de Ágaton, onde estarão presentes tanto
os retóricos, como os pedantes e os ricos de Atenas, nesse momento Vieira pinta
uma igreja; isto é: deixa-se ficar solitária, não estranha à festa, mas fiel à
sua íntima condição de pessoa imperdoável, como foi o próprio Sócrates na sua
actualidade”.
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