“Uma vez que a democracia está ferida de grandes injustiças e imperfeições, até na medida em que beneficia e valoriza ainda na modelo masculino de poder, pode por isso dizer-se que está em crise”.
Maria Barroso
1 – A Dra. Maria Barroso e a Embaixadora Anita Gradin, que co-presidem ao “Encontro” de Estocolmo, são feministas, como eu o sou e todos os que identificam humanismo e feminismo, definido como o humanismo centrado na “questão de género”.
Temos consciência de que as discriminações contra as Mulheres persistem em Estados democráticos, na esfera política, na organização e funcionamento administrativo do Estado, nas ONG’s, e, muito particularmente, naquelas de que vamos falar, as que compõem o movimento associativo da “Diáspora”.
Quase todos de rosto masculino. A começar no Brasil e a acabar em França, que lhe sucedeu, na segunda metade do século XX, como a meta principal da nossa emigração.
Diga-se, porém, que, ainda que “invisíveis” nos Centros de poder formal, as mulheres quase sempre estiveram presentes no esforço de consolidação das instituições – a seu modo…
Segregação houve (e há), frequentemente, reproduzindo modelos importados do círculo familiar: por exemplo, entregando às mulheres o trabalho de bastidores (que, às vezes vai ao ponto de decidir a própria programação cultural, mas mais, frequentemente, se confina à cozinha e arranjo e decoração das salas), essencial para o sucesso e suporte material de centros e clubes sociais.
Um curioso afloramento deste fenómeno de aproveitamento dos saberes das mulheres, na sua veste mais tradicional – trazendo-os do interior da casa para o exterior, na colectividade – é a criação de “departamento femininos”, “comissões femininas”, “comités de damas” (em países hispânicos) ou de “senhoras auxiliares”. Caracterizam-se, essencialmente, por agir na órbita de direcções, em geral, cem por cento masculinas, com incumbências como as que acabamos de referir.
A meu ver, não há nada de errado nesse aproveitamento de talentos úteis. Errado, é o facto de traduzir, na prática, um acantonamento: desse lado da organização não se transita para outras funções, para o núcleo directivo, para a presidência das associações, mesmo que haja querer e capacidade para tanto.
Estamos perante um círculo regido por códigos velhos, por modos de relacionamento entre os sexos imobilistas e preconceituosos.A abertura ao que é “moderno” ou “estrangeiro” limita-se, a aspectos protocolares: a mulher do presidente assume-se como a “primeira-dama” da instituição (assim mesmo, com esta designação, que na Europa começamos a adoptar, mas no que respeita à presidência da República…).
Eu, acho que o “título” prestigia os “titulares” e com isso nos devemos congratular. Muitas delas conseguem, realmente, dar-lhe conteúdo, ganhando prestígio e influência. Devemos, por isso, de reconhecer e apreciar a sua particular forma de exercício da cidadania, porque, afinal, também o é.
Criticável é, sim, a ideia da complementaridade rígida de tarefas, avessa à concepção da igualdade dos sexos e em contraste com o percurso das mulheres fora da sua comunidade “étnica”.
No Brasil, por exemplo, onde o associativismo mais do que centenário não tem praticamente líderes femininas, as portuguesas sobressaem na sociedade e na política brasileiras, na segunda metade do século XX: são portuguesas a primeira secretária de Estado do Rio de Janeiro (Manuela dos Santos, médica, ex-conselheira do CCP) e a primeira deputada à Assembleia Legislativa do Estado de S. Paulo (Ruth Escobar, feminista, actriz, produtora de teatro). Também no associativismo luso-brasileiro, de feição mais “brasileira”, “elas” têm tido sucesso: lembro a Eng.ª Fernanda Ramos, primeira presidente mundial do Elos Clube ou a actual presidente da Câmara do Comércio Luso-Brasileiro de Minas Gerais.
Do mesmo modo, na Europa, nomeadamente em França, julgo eu as nossas emigrantes têm sabido aproveitar a nível profissional, oportunidades que não diferem das dos homens, mas permanecem em lugares secundários nas organizações das comunidades. Sim ou Não? Espero a vossa resposta…
Parace-me que é mais no Norte da América que se vêm desenhando, gradualmente, a tendência para a igualdade, sobretudo, nas iniciativas de jovens. Aí, na Califórnia sobretudo, até a tradição tem uma influência positiva. As primeiras organizações de mulheres portuguesas datam do final de oitocentos: a “Sociedade Rainha Santa Isabel” e a “União Portuguesa Protectora do Estado da Califórnia”. Ambas criadas nos arredores de S. Francisco, rapidamente se ramificaram do norte a sul do Estado e foram autênticas escolas de acção cívica e de solidariedade, num tempo em que as mulheres não gozavam de direitos políticos, nem de igualdade de direitos civis, não podendo sequer dispor livremente dos seus bens – o que torna espantosa a adesão que granjearam. Foi uma singular aventura no espaço da emigração lusófona, que arrancou com 30 mulheres de Oackland, unidas numa pequena confraria de altar de uma igreja comunitária.
A “Sociedade Rainha Santa Isabel” e a “UPPC” integravam-se no movimento mutualista e tornaram-se grandes companhias seguradoras, ocupando um lugar de topo no conjunto de sociedades fraternais, chegando a contar com mais de uma dezena de milhar de membros!
Uma matriz, que inspirou a acção da mulher emigrante e não só nos EUA.
Pergunto-vos se aceitam ainda hoje esta dicotomia entre um “associativismo feminino”, centrado por excelência, no domínio da solidariedade e assistência social e uma participação no “associativismo misto, motivada, essencialmente, pela luta por valores culturais (teatro, música, folclore), do ensino da língua e da história e pela integração na nova sociedade.
2 - Estas são considerações de ordem genérica e, na falta de investigação e de dados recolhidos de forma sistemática, é de prever que vão surgindo nichos de evolução que desconhecemos, e outros a que não se vem atribuindo o devido relevo.
Será o caso do folclore, que pela própria natureza das coisas, da sua prática, é paritário. E não só no que respeita aos executantes da dança, mas ensaiadores e dirigentes.
Nas antípodas, está o desporto. Acontece também no nosso País: é um espaço de discriminação feminina, que nem sequer é vista como tal… A discriminação, porém, não acontece apenas nesse domínio.
"No poder" permanecem ainda, maioritariamente, os emigrantes da década de 50 e 60, a quem se fica a dever a esplêndida dimensão alcançada nas instituições, que herdaram do passado, nomeadamente no Brasil e EUA, ou que formaram em “novos destinos” da Europa, África, Canadá, Venezuela.
Interrogo-me e interrogo-vos sobre se será justo ou proveitoso tentar abrir caminhos à igualdade, em clima de guerra de sexos ou de gerações. Julgo que é preciso encontrar alternativas… Não há uma única saída, mas várias, para antecipar o advento da mudança.
O envelhecimento dos líderes tradicionais, formas várias de declínio dos sustentáculos de um mundo conservador, carência de candidatos, a provocar crises directivas – ainda não generalizadas - nas associações, podem constituir vias de acesso ao dirigismo, naturais e consensuais, para mulheres e jovens. Assim o queiram!Por isso, agora é o tempo certo de tomar consciência das novas realidades e de mobilizar estes grupos, que têm estado tão marginalizados.
Acreditamos que é preciso e é urgente apelar à sua participação – é esse o objectivo que aqui nos reúne.
Uma outra via de solução é ainda, a meu ver, o associativismo feminino.
Vejamos alguns dos melhores exemplos da sua face actual:
A Beneficência das Damas Portuguesas de CaracasNasceu de simples encontros de amigas, incentivadas pela Embaixatriz Teixeira de Sampayo. Organizavam festas, feiras de artesanato, leilões e, com meios inicialmente modestos, ajudavam mães e crianças de bairros degradados, através de cuidados médicos e de enfermagem, subsídios, bolsas de estudo. Actualmente são grandes entre as grandes instituições congéneres. Acabam de construir o que é possivelmente o maior, o mais funcional lar geriátrico em todo o espaço da nossa “Diáspora”.
A Liga da Mulher na África do SulManuela Rosa, antiga conselheira das comunidades presidiu durante tempo à “Liga da Mulher”, uma das primeiras “federações” existentes a nível de um país, com a preocupação de valorizar a intervenção das mulheres, através de formação profissional, da chamada a debates e à ajuda e combate às carências sentidas na comunidade.
A Associação de Mulher Migrante Portuguesa na ArgentinaÉ a mais recente. Tem apenas 7anos. Veio preencher a lacuna que o encerramento do Hospital da Beneficência deixara sem solução. Numa conjuntura política e económica adversa, verdadeiramente dramática para muitos portugueses, substituiu-se à inércia de dois Estados: o nosso, sempre distante e indiferente à dimensão da crise ali vivida, não atribuía sequer o pequeno subsídio do “ASIC”, a pretexto de que existia na Argentina uma pensão mínima; o argentino, então próximo do caos, não satisfazia pensão nenhuma…Por si sós, estas portuguesas socorreram dezenas de famílias empobrecidas. Ganharam o respeito e o apoio decisivo de sucessivos Embaixadores de Portugal, em Buenos Aires.Souberam encontrar um lugar no movimento associativo, mostrando que há oportunidades para as mulheres fazerem coisas importantes e prioritárias, com aceitação geral. As explicações de um tão extraordinário e súbito êxito serão várias: a qualidade e o empenho pessoal, certamente, e, talvez, o facto de muitas serem, se não dirigentes, mulheres dos directores, que, até aí, mal se conheciam e não colaboravam entre si, mas estavam "por dentro" nas diversas associações .Tudo mudou com uma simples acção, de mobilização, uma primeira reunião, uma conversa informal, um “brainstorming”, em quepude participar. Depois foi o trabalho comum, as realizações quotidianas, no terreno, através das quais ganharam confiança em si e se impuseram aos olhos da comunidade, com a evidência da obra feita.
3 – Da Europa não falarei mais.
Estão aqui as companheiras de ideais que podem dar-nos a lição, da sua experiência – e marcar as diferenças a analogias em relação às situações vividas em outros continentes. Para facilitar a comparação, referirei ainda exemplos de ascensão de mulheres portuguesas no movimento associativo tradicional:
O emblemático “Clube Português” de Buenos Aires tem pela primeira vez uma Presidente, que acaba de ser reeleita.
O mesmo acontece na segunda maior comunidade portuguesa, a da Argentina, em Comodoro Rivadávia, no sul da patagónia: Alice Amado é a presidente da quase centenária Sociedade Beneficente, que se distingue também na área cultural e social.
No Uruguai, o rancho folclórico, ex-líbris da “Casa de Portugal” é liderado por Josefa Panasco, asturiana, esposa e mãe de portugueses.
Em Toronto, o clube pioneiro (o “First”) teve a sua primeira presidente ainda na década de 80. Por altura do cinquentenário da chegada dos emigrantes portugueses ao Canadá (2003), oito das maiores associações luso-canadianas e as duas universitárias (Universidades de York e Toronto) eram encabeçadas por mulheres!
Em Montreal, o Clube mais antigo já tem a sua primeira presidente. O mesmo se diga do “Carrefour Lusophone”, uma associação de jovens, muito dinâmica e voltada para iniciativas que escapam aos moldes tradicionais - tendo, segundo a sua actual presidente buscado inspiração numa associação de jovens portugueses de França: Cap Maggelan.
Na Comunidade “Kristang” de Malaca, duas irmãs, Joan e Celine Marbeck, vêm lutando, incansavelmente, pela preservação da “herança portuguesa” do “creoulo”, da história, do folclore, da gastronomia.
No Equador, na Ilha de Vancouver, na Namíbia, na Austrália, há agora um número crescente de mulheres à frente de associações, escolas, grupos folclóricos e outros relevantes projectos culturais das nossas comunidades.
4 – Estaremos no princípio do fim da discriminação de género?
Se assim for, qual o futuro do “associativismo feminino”? Quando o "poder" for, de facto, partilhado por ambos os sexos na vida comunitária, veremos os homens a ingressar nas organizações formadas por mulheres? Isso aconteceu já, diga-se, na maioria das sociedades fraternais femininas da Califórnia...
Vivemos, sem dúvida, um período de transição.
Antever a igualdade no futuro não será já uma utopia irrealista, mas uma bem fundada esperança, a exigir a nossa acção concreta.
Maria Manuela Aguiar
Intervenção no "Encontro Para a Cidadania" em Estocolmo, Março de 2006
In "INICIATIVAS PARA A IGUALDADE DE GÉNERO"
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