sábado, 21 de janeiro de 2012

Rosa Simas A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA

A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA:

DIVERSIDADE NUMA CULTURA COMUM

Rosa Neves Simas

Entre 2003 e 2008, tive o prazer de publicar A Mulher nos Açores e nas Comunidades, uma colectânea de 6 volumes contendo 100 artigos escritos por mulheres e homens de variadas idades, profissões e situações de vida, dando assim voz às diferentes experiências e perspectivas sobre a situação da mulher no arquipélago e nas comunidades dos Estados Unidos e do Canadá. Os artigos estão organizados de acordo com os seguintes tópicos: a mulher na sociedade, na educação, nos média, nas artes e tradições, nos assuntos legais e na saúde, com destaque para a mulher no mundo do trabalho.

Numa panorâmica da mulher açoriana na Califórnia, o que transparece é um retrato de diversidade no seio de uma cultura comum. O que surge é uma panóplia de formas diferentes de viver a experiência comum da açorianidade em terras da costa oeste dos Estados Unidos. A diversidade dos artigos sobre a mulher migrante na Califórnia pode ser apresentada em relação a variadas temáticas.

A Migração e a Língua

A emigração das ilhas para a Califórnia é centenária. Por isso, começo por voltar atrás no tempo, evocando uma mulher que emigrou nos anos 50 do século passado, altura em que ser imigrante nos Estados Unidos era considerado um entrave e uma origem étnica não-“americana” era vista como um handicap. Neste contexto, o sentimento de saudade era enorme e a ligação à família vital.

Emigração para a Califórnia nos anos 50 do século XX

~~~~~~

“Cadernos de uma mulher migrante: A língua e a procura do sentido da vida”

Volume III


Figura 1: Imagem da autora dos cadernos quando emigrou para a Califórnia.

Mom & Dad

Sexta, 28 Maio 1954 – Faz hoje um ano que chegámos à América, a casa da Maria. Recebi carta do José. Fala-me em vir cá para o ano… Principiei a sentir o bebé mexer.

Assim começa o artigo “Cadernos de uma mulher migrante: a língua e a procura do sentido da vida” (III: 555-574), um texto em que a autora, Helena, analisa o impacto da emigração na vida da sua mãe, uma mulher que encontrou consolo na escrita, para expressar os dilemas e as saudades e para combater o isolamento que sentia no ambiente estranho da América dos anos 50, época ultra-conservadora e avessa à migração. Escreve a filha desta mulher que emigrou em 1953 da ilha do Pico:

Contra tudo e todos, a minha mãe escrevia e guardava cadernos de diários. Caladamente persistente, escrevia quase todos os dias. Isto poderá não parecer notável, mas a verdade é que ela tinha apenas completado a antiga quarta classe nos Açores. Para além disso, ela era uma mulher migrante a viver isolada, em termos culturais e linguísticos, numa das vacarias típicas do Vale de San Joaquin na Califórnia. (555)

19540528alzira

Figura 2: Folhas dos cadernos de uma mulher migrante na Califórnia.


Como todas as pessoas que migram, esta mulher enfrentou a barreira de uma língua estrangeira, refugiando-se na escrita em português, como explica a filha, Helena, hoje mestre em linguística aplicada:

A língua, em qualquer das suas formas, evoca muita emoção numa pessoa imigrante. É muitas vezes uma lembrança dolorosa e constante da identidade que ficou atrás, e da separação que sentem do mundo lá fora, a falar através de um código desconhecido. A minha mãe refugiava-se na língua, com os seus pensamentos anotados no papel, para desvendar os hiatos da sua experiência entre dois mundos. (556)

Com o tempo, a filha vem a considerar esta experiência bilingue e bicultural como uma mais-valia, para si e para as irmãs. Hoje professora, a coordenar o ensino da língua inglesa em doze países do Médio Oriente, Helena observa: “A maior sensibilidade meta-linguística das crianças bilingues permite uma percepção precoce da vertente abstracta e simbólica das palavras” (561). Falando da mãe, diz:

Ao longo dos anos, a minha mãe foi aprendendo a comunicar à vontade na língua inglesa e, com o meu pai ao lado, tornou-se numa pessoa activa e respeitada na comunidade da Califórnia. As entradas nos diários foram mostrando mais auto-confiança e mais abertura ao exterior, ao mesmo tempo que documentavam o seu envolvimento social, mais do que o seu isolamento pessoal. (562-3)

Património e Tradições

Para combater a solidão da migração, e para participar em eventos sociais e cultivar as tradições das ilhas, a maioria das pessoas que emigra procura as associações e sociedades da comunidade. No artigo “A mulher portuguesa nas sociedades fraternais da Califórnia” (I: 149-172), Deolinda Adão, directora do Portuguese Studies Program da University of California, Berkeley, faz um esboço da história de cinco sociedades comunitárias da Califórnia, duas das quais – SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel) e UPPEC (União Portuguesa Protectora da Califórnia) – foram pioneiras porque, numa altura em que o associativismo era masculino, e continuou a sê-lo marcadamente até aos anos 70 do século passado, estas duas sociedades foram criadas por e para mulheres, há mais de um século.

SPRSI

Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel

~~~~~~

1889

SPRSI

Figura 3: Sigla da Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel.


Das muitas e variadas associações e sociedades que organizam eventos comunitários e mantêm as tradições açorianas na Califórnia, as que são conhecidas como Irmandade do Espírito Santo (IDES), ou Sociedade do Espírito Santo (SES) são notáveis. Existe uma, e por vezes várias, em cada comunidade, formando uma rede que atravessa o estado, de norte a sul. A primeira foi criada em 1861. Ao longo de 150 anos, chegou a haver 144 irmandades. Hoje, 99 mantêm-se em actividade, organizando celebrações em honra do Espírito Santo em todo o estado.

Desde 1861,

houve 144 irmandades do Espírito Santo na Califórnia.

~~~~~~

Presentemente,

99 destas irmandades continuam em actividade.

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Figura 4: Imagem da rainha e aias de uma festa do Espírito Santo na Califórnia.


No artigo “As rainhas das festas na Califórnia: a inversão e reversão do ritual” (II: 281-316), a antropóloga Mari Lyn Salvador descreve os rituais que caracterizam esta tradição secular, dizendo: “As rainhas participam em festividades que derivam do ciclo ritual português associado a Santa Isabel, Rainha de Portugal de 1261 a 1336” (282). Numa perspectiva histórica e antropológica, Mari Lyn descreve “uma das formas encontradas pelos imigrantes para combinar elementos expressivos do país de acolhimento, com os elementos da sua terra natal que consideram importantes para a manutenção da sua identidade cultural” (283).

De uma forma sintética, Mari Lyn explica como “uma rainha do século XIII que oferecia as suas jóias para dar de comer aos pobres e coroava um homem pobre com a sua própria coroa” foi transformada nas rainhas de hoje, ricamente trajadas com vestidos, capas e tiaras de luxo. Tal metamorfose é exemplo claro do processo de recriação e adaptação das tradições do Velho Mundo, transplantadas no Novo Mundo. Simultaneamente, é um exemplo notável da intervenção activa da mulher na transmissão do património cultural, entre gerações.

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Caixa de texto: Figura 5: Imagem de uma mãe e a filha, rainha da festa de Espírito Santo.


A Expressão Artística

Como migrantes, as/os açor-descendentes vivem a sua herança cultural de formas variadíssimas, com características pessoais e idiossincráticas. A diversidade de técnicas e temáticas nas obras de duas artistas plásticas da Califórnia retrata bem esta realidade. A mais jovem artista, Marlene Angeja, que vive na área de San Francisco, diz em “Duas paisagens: a visão de uma artista luso-americana” (II: 421-438):

Aquilo que une as várias formas que as minhas obras assumem é uma força subjacente, que é muitas vezes inconsciente e instintiva. Essa força motora parece estar relacionada com duas coisas. Uma é a paisagem das Ilhas dos Açores. A outra é o meu interesse nas histórias, lendas e mitologias do povo português. (422)

Caixa de texto: Figura 6: Imagem da obra “Duas paisagens” de Marlene Angeja.img025

A obra “Duas Paisagens” conjuga a tradição da vindima nas ilhas com a vivência do meio rural da Califórnia onde Marlene cresceu. Outro exemplo do seu trabalho é a própria capa da antologia A Mulher nos Açores e nas Comunidades, que retrata a mãe desta artista, hoje mestre em Belas Artes e professora na California State University, San José. Referindo-se a outra obra, Marlene desvenda aspectos da sua experiência como descendente de emigrantes oriundos dos Açores:

Ao Aeroporto é um desenho mixed media de uma menina com o dedo na boca… Ao longo do lado esquerdo da tela lemos as palavras “eu fui ao aeroporto, tu foste ao aeroporto, você foi ao aeroporto…” Esta conjugação do verbo “ir” em português evoca a aquisição de uma língua estrangeira. Alude, também, ao medo e ao encanto que senti na primeira viagem às ilhas e ao sentido de perda que senti quando partimos. Um aeroporto é um lugar de chegadas e partidas. Como os portos de onde os antigos marinheiros partiram para as Descobertas, é um lugar marcado pela saudade. (423)

A segunda artista é Maxine Olson, que vive no sul do Vale de San Joaquin e tem um largo currículo artístico. Em vez de abstracta, como a da Marlene, a obra de Maxine é claramente figurativa, justapondo imagens de pessoas que marcaram a sua vida numa tentativa de recriar na tela as narrativas de uma açor-descendente. O artigo de Maxine tem por título “Um retrato da minha mãe: o que ficou por dizer” (Volume II: 409-420) e conta a história da sua viagem aos Açores, em busca de respostas sobre as suas antepassadas. Maxine acaba o texto dizendo:

As tentativas que tenho feito para descobrir os segredos da vida de minha mãe, e da mãe dela, têm-me levado a perceber melhor as forças que controlam a minha vida. Se vamos aprender com o passado, e ser perdoadas pelas nossas decisões e omissões no presente, não podemos esquecer as estórias e as ofensas, as penas e as dificuldades pelas quais as nossas progenitoras passaram na sua demanda pelo amor e pelo afecto. (414)

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Caixa de texto: Figura 7: Imagem da obra “Retrato da Minha Mãe” da artista Maxine Olson.


A Saúde e o Envelhecimento

A construção da identidade migrante depende muito das relações em família e da postura perante o passado e a vida presente dos familiares. Nesta demanda, o desafio é ainda maior quando o envelhecimento das pessoas que nos são queridas bate à porta. Efectivamente, neste contexto, como em tantos outros, as mulheres têm maior tendência para assumir o papel de cuidadoras, dentro da família e da própria comunidade. Esta dinâmica social é a génese do artigo “POSSO: um centro comunitário da Califórnia” (IV: 975-982), da autoria de Vicky Machado. Como co-fundadora da POSSO e elemento activo da comunidade, Vicky descreve a origem deste centro comunitário, há mais de três décadas:

A Portuguese Organization for Social Services and Opportunities (POSSO) é uma ONG e foi criada pela comunidade portuguesa de San José para auxiliar imigrantes na sua integração social e adaptação ao país de acolhimento. Foi fundada em 1976 para assegurar à comunidade portuguesa pleno acesso aos serviços sociais e benefícios governamentais… Éramos formados e estávamos inspirados pela onda de orgulho étnico que prevalecia na América de então, e pela calorosa lealdade que sentíamos pelos nossos pais e avós imigrantes… Para o nome, escolhemos o acrónimo POSSO, precisamente para combater o fatalismo da nossa comunidade idosa, que se sentia fragilizada para conseguir a integração social de que precisavam para lhes garantir a sua quota-parte do sonho americano. (975)

Health Fair at POSSO

Figura 8: Imagem da dinâmica social na sede da organização POSSO.


Ao descrever os muitos programas e serviços da POSSO, Vicky sublinha a importância desta organização para a comunidade idosa, “um grupo isolado porque as/os familiares tinham e têm o seu tempo muito ocupado, trabalhando fora de casa para conseguir a sobrevivência económica da família” (976). Ao terminar, Vicky destaca a intervenção feminina neste projecto comunitário:

Desde o princípio, as mulheres têm sido fundamentais para a POSSO, como fundadoras, chefes, staff e voluntárias. Numa perspectiva tradicional, a POSSO desempenha, hoje, as “tarefas da mulher” porque presta cuidados e apoio às pessoas idosas e outros familiares vulneráveis, enquanto as mulheres, que cumpririam tais tarefas, trabalham fora de casa, contribuindo assim para o sustento da família e para a sua realização profissional. Vista nesta perspectiva, a POSSO deve o seu sucesso e longevidade à feliz conjugação de valores tradicionais e actuais. (978)

Educação e Empresariado

Tradicionalmente, a mulher açoriana, dentro e fora das ilhas, foi sujeita a muitas limitações e condicionalismos sociais e culturais. No contexto actual, muito mudou. Na educação, por exemplo, verifica-se uma acentuada presença da mulher no ensino superior. Elmano Costa descreve esta situação no artigo “A feminização do ensino superior numa comunidade rural da Califórnia” (III: 575-620). Este educador faz um esboço da comunidade rural, situada no norte do Vale de San Joaquin, ao mesmo tempo que descreve a evolução dos valores e olhares da mesma, no que concerne à educação, ao trabalho e à situação da mulher. Ao apresentar os resultados do seu estudo, este educador e professor na University of California, Stanislaus, faz a seguinte síntese:

As mulheres luso-californianas gozam de oportunidades que as suas mães nunca tiveram. Podem seguir uma carreira; casar quando querem e não porque precisam de alguém que as sustente; escolher ficar solteiras; ou optar por serem domésticas. E podem regressar à vacaria, para assumir a gerência do negócio, mas como gerentes diplomadas. (583)

Elmano termina o seu texto com este desejo: “E oxalá que elas possam dar aos seus filhos homens a mesma motivação que as levou a frequentar e a completar, com êxito, os seus cursos superiores, para que eles, no futuro, possam também usufruir dos benefícios de um diploma universitário” (584).

A mulher açor-californiana tem-se aventurado, ela própria, em outros domínios, incluindo o mundo empresarial. O mesmo autor debruça-se sobre este tema no artigo “Empresariado no feminino: novos horizontes para a mulher luso-americana” (VI: 1429-1456). Ao analisar a crescente participação da mulher como empresária no mundo dos negócios, Elmano observa: “Estas mulheres são, sem dúvida, pioneiras, pois conseguiram não só superar a discriminação de género, como também ultrapassaram as dificuldades que imigrantes, da primeira e da segunda gerações, tiveram de enfrentar para se integrarem na nova cultura do país de acolhimento e no mundo competitivo do trabalho e do empresariado” (1429).

Efectivamente, visto que a relação de qualquer imigrante com a sua comunidade é multifacetada e, por vezes, muito complicada, estas empresárias californianas tiveram de enfrentar e ultrapassar muitos obstáculos e desafios. Numa óptica negativa, a descriminação de género teima em persistir e são muitas as dificuldades da integração numa outra cultura. Do lado positivo, verifica-se uma relação de grande proximidade e envolvência com a comunidade, fazendo com que estas mulheres destaquem o desejo e o prazer que sentem ao contribuírem para o bem-estar da mesma. Segundo o autor: “As empresárias luso-americanas gozam de outra característica que não vem na literatura. Quase todas sublinham a importância que tem nas suas vidas o contributo que podem prestar à comunidade luso-americana” (1439).

A Indústria de Lacticínios da Califórnia

Em termos económicos, ao longo de décadas, o grande trunfo da presença açoriana na Califórnia tem estado na indústria de lacticínios, hoje um negócio de milhões que está predominantemente nas mãos deste grupo da diáspora. À primeira vista, estas mãos parecem ser só masculinas. Contudo, um olhar mais cuidado revela outra realidade, como demonstra Alvin Graves em “Empresárias invisíveis: a mulher açor-americana nos lacticínios da Califórnia” (VI: 1487-1510). Este estudioso da presença açor-americana nos lacticínios californianos aponta para duas épocas:

…o período pré-2ª guerra mundial, quando dominava a cultura tradicional e a produção leiteira era um modo de vida, e o período pós- guerra, quando as normas culturais foram-se alterando e a produção leiteira do estado se transformou no que se chama agrobusiness. A mulher está bem presente em ambos os períodos, mas de uma forma invisível. (1488)

Figura 9: A mulher migrante na indústria de lacticínios da Califórnia. *

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Embora tenham sempre contribuído para os trabalhos da lavoura, as mulheres, actualmente com níveis mais elevados de escolarização, estão mais bem preparadas para lidar com o novo mundo do agrobusiness, em particular com a gestão financeira e a criação de bezerros. Alvin explica:

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

…são elas que fizeram cursos superiores; especializaram-se em gestão de empresas, finanças, contabilidade ou direito, tendo assim uma formação essencial que o marido raramente possui. Como a geração anterior, muitas continuam a gerir o negócio. Outras fazem marketing e formação do consumidor, e tomam parte nos lobbies do sector e na promoção de legislação favorável ao negócio leiteiro. (1495)

Figura 10: Imagem evocativa da presença açoriana na indústria leiteira californiana. *

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Formada em direito, Deanne Ferreira é uma açor-descendente que lida de perto com a legislação referente aos lacticínios, especialmente vista à luz das questões ambientais. No texto “Uma mulher e o ambiente: os desafios de sempre (VI: 1643-1658), Deanne explica:

Sendo recente, a legislação ambiental é ainda considerada um nicho do mercado no mundo da advocacia. É uma área dominada por homens, porque é normalmente necessário ter formação científica, e são os homens, mais do que as mulheres, que fazem a sua formação nas ciências exactas. (1645)

Tendo referido a participação dos seus antepassados na indústria leiteira do estado, Deanne conjuga a sua profissão com as suas raízes açóricas quando, ao referir o seu futuro profissional, descreve as suas intenções e motivações da seguinte forma:

Estou a estudar os efeitos da emissão de gás metano pelas vacas leiteiras. Várias vacarias estão a utilizar equipamento próprio para captar o gás metano do estrume (biomassa) de vaca, para depois convertê-lo em energia renovável. Os benefícios são notáveis. É minha intenção auxiliar os produtores de lacticínios da Califórnia a lidar com o labirinto de regras e leis ambientais que existem actualmente. Quero contribuir para que a herança dos nossos antepassados na indústria leiteira deste estado permaneça nas comunidades de descendentes de imigrantes dos Açores, um povo cujo esforço e conhecimento ultrapassaram tudo e todos. (1648-9)

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

Redefinindo a Identidade Cultural

Demonstrando, assim, uma grande sensibilidade para com a sua herança cultural e o reconhecimento inequívico das capacidades dos seus antepassados, Deanne Ferreira é uma jovem açor-descendente que, no contexto actual, está a redefinir a sua identidade cultural à luz dos novos paradigmas da contemporaneidade. Outro exemplo é Márcia Dinis, que se apresenta como “O ser jovem e luso-americana na era da globalização” (I: 181-190), descrevendo os afazers do seu dia-a-dia e os parâmetros da sua identidade da seguinte forma:

Levanto-me e tento fazer um jogging matinal todas as manhãs. Vou às aulas, faço umas horas de trabalho part-time, e às vezes jogo futebol ao serão. Depois, vou para casa e falo ao telefone com a minha mãe. Estas conversas são a melhor parte do meu dia porque me acalmam e me dão a oportunidade de falar a minha língua materna, o português… Na faculdade, escolhi o curso de Estudos Globais. Se perceber melhor a nossa sociedade global, talvez possa ajudar a minimizar os malefícios da mesma, enquanto ajudo a promover os benefícios. Ao mesmo tempo, estou a especializar-me em Português. Estudo a língua, a literatura e a cultura. Sou luso-americana, sou mulher e tenho 21 anos. (181)

Mais à frente no seu artigo, a jovem Márcia faz o seguinte o balanço do seu mundo e da sua identidade pessoal e cultural, afirmando:

Sou uma pessoa privilegiada. Acredito plenamente que esta era da globalização tem levado os jovens a sentir orgulho pela sua herança cultural… A bandeira portuguesa por cima da minha cama, a tatuagem do açor nas minhas costas, as peças de louça tradicional penduradas na parede do meu apartamento lembram-me que estou acima da média, que sou especial porque sou portuguesa. (182)

Carol Gregory é outra jovem de ascendência açoriana na Califórnia que está a desbravar o seu próprio caminho e a forjar o seu retrato individual, em relação estreita com o passado colectivo da comunidade californiana. No artigo “A geografia da minha identidade cultural” (I: 191-212), Carol traça as seguintes coordenadas identitárias:

Como geógrafa, estou a estudar a dimensão geográfica e a localização específica dos marcos da cultura lusa na Califórnia. Refiro-me a salões, igrejas e outros edifícios, e a nomes de ruas, zonas comerciais, bairros e parques. A riqueza deste património é o tema da minha tese de doutoramento, onde faço um inventário da quantidade e localização destes marcos historico-geográficos, desta forma ilustrando e descrevendo o impacto da nossa presença na paisagem cultural deste estado. (195)

Tendo colaborado com a Portuguese Historical and Cultural Society (PHCS) de Sacramento, a autora afirma que o contributo de Portugal foi fundamental para a história e para “o conhecimento geográfico do Mundo” (191).

Para concluir, o exemplo de uma jovem que está a redefinir a sua identidade e herança cultural ao ritmo da contemporaneidade. Chama-se Felicia Viator e é autora do artigo “A Neta do hip-hop: uma luso-americana no mundo da música contemporânea” (II: 381-392). Esta jovem, que vive na cidade de San Francisco, é DJ e é conhecida pelo apelido Neta. Como mulher, Felícia considera-se “quase um oximoro na cena hip-hop” e explica que, desde o seu início, nos anos 70, a cultura hip-hop tem seguido o modelo masculino. Eis a surpresa e a satisfação do público que assiste às suas actuações. Descendente, pelo lado materno, de emigrantes do Pico, esta jovem explica que escolheu o nome Neta em memória da avó. De visita à ilha ancestral, Felicia descreve os seus sentimentos e as recordações da avó, redefinindo-se como pessoa à luz desta herança vital e marcante, quando escreve:

De visita ao Pico, deixei-me levar pelo mundo da minha e comecei a perceber a dor que sentia. Procurava compreender como ela e este mundo tinham sido, sempre, uma parte vital de quem eu sou. Logo de seguida, a alcunha de DJ que tinha escolhido, o nome pelo qual sou conhecida no mundo do hip-hop de toda a área de San Francisco, cristalizou-se. Subitamente, o meu espírito elevou-se e senti simultaneamente humildade e ousadia. Parti do Pico e dos Açores sabendo: “I am Neta.” (385)

“I am Neta

PicoIsland-Azores

Figura 11: Imagem da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.


BIBLIOGRAFIA

GOULART, T., coordenação (2003). The Holy Ghost Festas: A Historical Perspective of the Portuguese in California. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

GRAVES, A., (2004). The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2003). A Mulher nos Açores e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes I, II, III e IV. Ponta Delgada: Empresa Gráfica Açoriana.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2008). A Mulher e o Trabalho nos Açores e nas Comunidades / Women and Work in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes V e VI. Ponta Delgada: UMAR-Açores.A MULHER MIGRANTE AÇORIANA NA CALIFÓRNIA:

DIVERSIDADE NUMA CULTURA COMUM

Rosa Neves Simas

Entre 2003 e 2008, tive o prazer de publicar A Mulher nos Açores e nas Comunidades, uma colectânea de 6 volumes contendo 100 artigos escritos por mulheres e homens de variadas idades, profissões e situações de vida, dando assim voz às diferentes experiências e perspectivas sobre a situação da mulher no arquipélago e nas comunidades dos Estados Unidos e do Canadá. Os artigos estão organizados de acordo com os seguintes tópicos: a mulher na sociedade, na educação, nos média, nas artes e tradições, nos assuntos legais e na saúde, com destaque para a mulher no mundo do trabalho.

Numa panorâmica da mulher açoriana na Califórnia, o que transparece é um retrato de diversidade no seio de uma cultura comum. O que surge é uma panóplia de formas diferentes de viver a experiência comum da açorianidade em terras da costa oeste dos Estados Unidos. A diversidade dos artigos sobre a mulher migrante na Califórnia pode ser apresentada em relação a variadas temáticas.

A Migração e a Língua

A emigração das ilhas para a Califórnia é centenária. Por isso, começo por voltar atrás no tempo, evocando uma mulher que emigrou nos anos 50 do século passado, altura em que ser imigrante nos Estados Unidos era considerado um entrave e uma origem étnica não-“americana” era vista como um handicap. Neste contexto, o sentimento de saudade era enorme e a ligação à família vital.

Emigração para a Califórnia nos anos 50 do século XX

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“Cadernos de uma mulher migrante: A língua e a procura do sentido da vida”

Volume III


Figura 1: Imagem da autora dos cadernos quando emigrou para a Califórnia.

Mom & Dad

Sexta, 28 Maio 1954 – Faz hoje um ano que chegámos à América, a casa da Maria. Recebi carta do José. Fala-me em vir cá para o ano… Principiei a sentir o bebé mexer.

Assim começa o artigo “Cadernos de uma mulher migrante: a língua e a procura do sentido da vida” (III: 555-574), um texto em que a autora, Helena, analisa o impacto da emigração na vida da sua mãe, uma mulher que encontrou consolo na escrita, para expressar os dilemas e as saudades e para combater o isolamento que sentia no ambiente estranho da América dos anos 50, época ultra-conservadora e avessa à migração. Escreve a filha desta mulher que emigrou em 1953 da ilha do Pico:

Contra tudo e todos, a minha mãe escrevia e guardava cadernos de diários. Caladamente persistente, escrevia quase todos os dias. Isto poderá não parecer notável, mas a verdade é que ela tinha apenas completado a antiga quarta classe nos Açores. Para além disso, ela era uma mulher migrante a viver isolada, em termos culturais e linguísticos, numa das vacarias típicas do Vale de San Joaquin na Califórnia. (555)

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Figura 2: Folhas dos cadernos de uma mulher migrante na Califórnia.


Como todas as pessoas que migram, esta mulher enfrentou a barreira de uma língua estrangeira, refugiando-se na escrita em português, como explica a filha, Helena, hoje mestre em linguística aplicada:

A língua, em qualquer das suas formas, evoca muita emoção numa pessoa imigrante. É muitas vezes uma lembrança dolorosa e constante da identidade que ficou atrás, e da separação que sentem do mundo lá fora, a falar através de um código desconhecido. A minha mãe refugiava-se na língua, com os seus pensamentos anotados no papel, para desvendar os hiatos da sua experiência entre dois mundos. (556)

Com o tempo, a filha vem a considerar esta experiência bilingue e bicultural como uma mais-valia, para si e para as irmãs. Hoje professora, a coordenar o ensino da língua inglesa em doze países do Médio Oriente, Helena observa: “A maior sensibilidade meta-linguística das crianças bilingues permite uma percepção precoce da vertente abstracta e simbólica das palavras” (561). Falando da mãe, diz:

Ao longo dos anos, a minha mãe foi aprendendo a comunicar à vontade na língua inglesa e, com o meu pai ao lado, tornou-se numa pessoa activa e respeitada na comunidade da Califórnia. As entradas nos diários foram mostrando mais auto-confiança e mais abertura ao exterior, ao mesmo tempo que documentavam o seu envolvimento social, mais do que o seu isolamento pessoal. (562-3)

Património e Tradições

Para combater a solidão da migração, e para participar em eventos sociais e cultivar as tradições das ilhas, a maioria das pessoas que emigra procura as associações e sociedades da comunidade. No artigo “A mulher portuguesa nas sociedades fraternais da Califórnia” (I: 149-172), Deolinda Adão, directora do Portuguese Studies Program da University of California, Berkeley, faz um esboço da história de cinco sociedades comunitárias da Califórnia, duas das quais – SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel) e UPPEC (União Portuguesa Protectora da Califórnia) – foram pioneiras porque, numa altura em que o associativismo era masculino, e continuou a sê-lo marcadamente até aos anos 70 do século passado, estas duas sociedades foram criadas por e para mulheres, há mais de um século.

SPRSI

Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel

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1889

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Figura 3: Sigla da Sociedade Portuguesa Rainha Santa Isabel.


Das muitas e variadas associações e sociedades que organizam eventos comunitários e mantêm as tradições açorianas na Califórnia, as que são conhecidas como Irmandade do Espírito Santo (IDES), ou Sociedade do Espírito Santo (SES) são notáveis. Existe uma, e por vezes várias, em cada comunidade, formando uma rede que atravessa o estado, de norte a sul. A primeira foi criada em 1861. Ao longo de 150 anos, chegou a haver 144 irmandades. Hoje, 99 mantêm-se em actividade, organizando celebrações em honra do Espírito Santo em todo o estado.

Desde 1861,

houve 144 irmandades do Espírito Santo na Califórnia.

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Presentemente,

99 destas irmandades continuam em actividade.

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Figura 4: Imagem da rainha e aias de uma festa do Espírito Santo na Califórnia.


No artigo “As rainhas das festas na Califórnia: a inversão e reversão do ritual” (II: 281-316), a antropóloga Mari Lyn Salvador descreve os rituais que caracterizam esta tradição secular, dizendo: “As rainhas participam em festividades que derivam do ciclo ritual português associado a Santa Isabel, Rainha de Portugal de 1261 a 1336” (282). Numa perspectiva histórica e antropológica, Mari Lyn descreve “uma das formas encontradas pelos imigrantes para combinar elementos expressivos do país de acolhimento, com os elementos da sua terra natal que consideram importantes para a manutenção da sua identidade cultural” (283).

De uma forma sintética, Mari Lyn explica como “uma rainha do século XIII que oferecia as suas jóias para dar de comer aos pobres e coroava um homem pobre com a sua própria coroa” foi transformada nas rainhas de hoje, ricamente trajadas com vestidos, capas e tiaras de luxo. Tal metamorfose é exemplo claro do processo de recriação e adaptação das tradições do Velho Mundo, transplantadas no Novo Mundo. Simultaneamente, é um exemplo notável da intervenção activa da mulher na transmissão do património cultural, entre gerações.

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Caixa de texto: Figura 5: Imagem de uma mãe e a filha, rainha da festa de Espírito Santo.


A Expressão Artística

Como migrantes, as/os açor-descendentes vivem a sua herança cultural de formas variadíssimas, com características pessoais e idiossincráticas. A diversidade de técnicas e temáticas nas obras de duas artistas plásticas da Califórnia retrata bem esta realidade. A mais jovem artista, Marlene Angeja, que vive na área de San Francisco, diz em “Duas paisagens: a visão de uma artista luso-americana” (II: 421-438):

Aquilo que une as várias formas que as minhas obras assumem é uma força subjacente, que é muitas vezes inconsciente e instintiva. Essa força motora parece estar relacionada com duas coisas. Uma é a paisagem das Ilhas dos Açores. A outra é o meu interesse nas histórias, lendas e mitologias do povo português. (422)

Caixa de texto: Figura 6: Imagem da obra “Duas paisagens” de Marlene Angeja.img025

A obra “Duas Paisagens” conjuga a tradição da vindima nas ilhas com a vivência do meio rural da Califórnia onde Marlene cresceu. Outro exemplo do seu trabalho é a própria capa da antologia A Mulher nos Açores e nas Comunidades, que retrata a mãe desta artista, hoje mestre em Belas Artes e professora na California State University, San José. Referindo-se a outra obra, Marlene desvenda aspectos da sua experiência como descendente de emigrantes oriundos dos Açores:

Ao Aeroporto é um desenho mixed media de uma menina com o dedo na boca… Ao longo do lado esquerdo da tela lemos as palavras “eu fui ao aeroporto, tu foste ao aeroporto, você foi ao aeroporto…” Esta conjugação do verbo “ir” em português evoca a aquisição de uma língua estrangeira. Alude, também, ao medo e ao encanto que senti na primeira viagem às ilhas e ao sentido de perda que senti quando partimos. Um aeroporto é um lugar de chegadas e partidas. Como os portos de onde os antigos marinheiros partiram para as Descobertas, é um lugar marcado pela saudade. (423)

A segunda artista é Maxine Olson, que vive no sul do Vale de San Joaquin e tem um largo currículo artístico. Em vez de abstracta, como a da Marlene, a obra de Maxine é claramente figurativa, justapondo imagens de pessoas que marcaram a sua vida numa tentativa de recriar na tela as narrativas de uma açor-descendente. O artigo de Maxine tem por título “Um retrato da minha mãe: o que ficou por dizer” (Volume II: 409-420) e conta a história da sua viagem aos Açores, em busca de respostas sobre as suas antepassadas. Maxine acaba o texto dizendo:

As tentativas que tenho feito para descobrir os segredos da vida de minha mãe, e da mãe dela, têm-me levado a perceber melhor as forças que controlam a minha vida. Se vamos aprender com o passado, e ser perdoadas pelas nossas decisões e omissões no presente, não podemos esquecer as estórias e as ofensas, as penas e as dificuldades pelas quais as nossas progenitoras passaram na sua demanda pelo amor e pelo afecto. (414)

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Caixa de texto: Figura 7: Imagem da obra “Retrato da Minha Mãe” da artista Maxine Olson.


A Saúde e o Envelhecimento

A construção da identidade migrante depende muito das relações em família e da postura perante o passado e a vida presente dos familiares. Nesta demanda, o desafio é ainda maior quando o envelhecimento das pessoas que nos são queridas bate à porta. Efectivamente, neste contexto, como em tantos outros, as mulheres têm maior tendência para assumir o papel de cuidadoras, dentro da família e da própria comunidade. Esta dinâmica social é a génese do artigo “POSSO: um centro comunitário da Califórnia” (IV: 975-982), da autoria de Vicky Machado. Como co-fundadora da POSSO e elemento activo da comunidade, Vicky descreve a origem deste centro comunitário, há mais de três décadas:

A Portuguese Organization for Social Services and Opportunities (POSSO) é uma ONG e foi criada pela comunidade portuguesa de San José para auxiliar imigrantes na sua integração social e adaptação ao país de acolhimento. Foi fundada em 1976 para assegurar à comunidade portuguesa pleno acesso aos serviços sociais e benefícios governamentais… Éramos formados e estávamos inspirados pela onda de orgulho étnico que prevalecia na América de então, e pela calorosa lealdade que sentíamos pelos nossos pais e avós imigrantes… Para o nome, escolhemos o acrónimo POSSO, precisamente para combater o fatalismo da nossa comunidade idosa, que se sentia fragilizada para conseguir a integração social de que precisavam para lhes garantir a sua quota-parte do sonho americano. (975)

Health Fair at POSSO

Figura 8: Imagem da dinâmica social na sede da organização POSSO.


Ao descrever os muitos programas e serviços da POSSO, Vicky sublinha a importância desta organização para a comunidade idosa, “um grupo isolado porque as/os familiares tinham e têm o seu tempo muito ocupado, trabalhando fora de casa para conseguir a sobrevivência económica da família” (976). Ao terminar, Vicky destaca a intervenção feminina neste projecto comunitário:

Desde o princípio, as mulheres têm sido fundamentais para a POSSO, como fundadoras, chefes, staff e voluntárias. Numa perspectiva tradicional, a POSSO desempenha, hoje, as “tarefas da mulher” porque presta cuidados e apoio às pessoas idosas e outros familiares vulneráveis, enquanto as mulheres, que cumpririam tais tarefas, trabalham fora de casa, contribuindo assim para o sustento da família e para a sua realização profissional. Vista nesta perspectiva, a POSSO deve o seu sucesso e longevidade à feliz conjugação de valores tradicionais e actuais. (978)

Educação e Empresariado

Tradicionalmente, a mulher açoriana, dentro e fora das ilhas, foi sujeita a muitas limitações e condicionalismos sociais e culturais. No contexto actual, muito mudou. Na educação, por exemplo, verifica-se uma acentuada presença da mulher no ensino superior. Elmano Costa descreve esta situação no artigo “A feminização do ensino superior numa comunidade rural da Califórnia” (III: 575-620). Este educador faz um esboço da comunidade rural, situada no norte do Vale de San Joaquin, ao mesmo tempo que descreve a evolução dos valores e olhares da mesma, no que concerne à educação, ao trabalho e à situação da mulher. Ao apresentar os resultados do seu estudo, este educador e professor na University of California, Stanislaus, faz a seguinte síntese:

As mulheres luso-californianas gozam de oportunidades que as suas mães nunca tiveram. Podem seguir uma carreira; casar quando querem e não porque precisam de alguém que as sustente; escolher ficar solteiras; ou optar por serem domésticas. E podem regressar à vacaria, para assumir a gerência do negócio, mas como gerentes diplomadas. (583)

Elmano termina o seu texto com este desejo: “E oxalá que elas possam dar aos seus filhos homens a mesma motivação que as levou a frequentar e a completar, com êxito, os seus cursos superiores, para que eles, no futuro, possam também usufruir dos benefícios de um diploma universitário” (584).

A mulher açor-californiana tem-se aventurado, ela própria, em outros domínios, incluindo o mundo empresarial. O mesmo autor debruça-se sobre este tema no artigo “Empresariado no feminino: novos horizontes para a mulher luso-americana” (VI: 1429-1456). Ao analisar a crescente participação da mulher como empresária no mundo dos negócios, Elmano observa: “Estas mulheres são, sem dúvida, pioneiras, pois conseguiram não só superar a discriminação de género, como também ultrapassaram as dificuldades que imigrantes, da primeira e da segunda gerações, tiveram de enfrentar para se integrarem na nova cultura do país de acolhimento e no mundo competitivo do trabalho e do empresariado” (1429).

Efectivamente, visto que a relação de qualquer imigrante com a sua comunidade é multifacetada e, por vezes, muito complicada, estas empresárias californianas tiveram de enfrentar e ultrapassar muitos obstáculos e desafios. Numa óptica negativa, a descriminação de género teima em persistir e são muitas as dificuldades da integração numa outra cultura. Do lado positivo, verifica-se uma relação de grande proximidade e envolvência com a comunidade, fazendo com que estas mulheres destaquem o desejo e o prazer que sentem ao contribuírem para o bem-estar da mesma. Segundo o autor: “As empresárias luso-americanas gozam de outra característica que não vem na literatura. Quase todas sublinham a importância que tem nas suas vidas o contributo que podem prestar à comunidade luso-americana” (1439).

A Indústria de Lacticínios da Califórnia

Em termos económicos, ao longo de décadas, o grande trunfo da presença açoriana na Califórnia tem estado na indústria de lacticínios, hoje um negócio de milhões que está predominantemente nas mãos deste grupo da diáspora. À primeira vista, estas mãos parecem ser só masculinas. Contudo, um olhar mais cuidado revela outra realidade, como demonstra Alvin Graves em “Empresárias invisíveis: a mulher açor-americana nos lacticínios da Califórnia” (VI: 1487-1510). Este estudioso da presença açor-americana nos lacticínios californianos aponta para duas épocas:

…o período pré-2ª guerra mundial, quando dominava a cultura tradicional e a produção leiteira era um modo de vida, e o período pós- guerra, quando as normas culturais foram-se alterando e a produção leiteira do estado se transformou no que se chama agrobusiness. A mulher está bem presente em ambos os períodos, mas de uma forma invisível. (1488)

Figura 9: A mulher migrante na indústria de lacticínios da Califórnia. *

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Embora tenham sempre contribuído para os trabalhos da lavoura, as mulheres, actualmente com níveis mais elevados de escolarização, estão mais bem preparadas para lidar com o novo mundo do agrobusiness, em particular com a gestão financeira e a criação de bezerros. Alvin explica:

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

…são elas que fizeram cursos superiores; especializaram-se em gestão de empresas, finanças, contabilidade ou direito, tendo assim uma formação essencial que o marido raramente possui. Como a geração anterior, muitas continuam a gerir o negócio. Outras fazem marketing e formação do consumidor, e tomam parte nos lobbies do sector e na promoção de legislação favorável ao negócio leiteiro. (1495)

Figura 10: Imagem evocativa da presença açoriana na indústria leiteira californiana. *

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Formada em direito, Deanne Ferreira é uma açor-descendente que lida de perto com a legislação referente aos lacticínios, especialmente vista à luz das questões ambientais. No texto “Uma mulher e o ambiente: os desafios de sempre (VI: 1643-1658), Deanne explica:

Sendo recente, a legislação ambiental é ainda considerada um nicho do mercado no mundo da advocacia. É uma área dominada por homens, porque é normalmente necessário ter formação científica, e são os homens, mais do que as mulheres, que fazem a sua formação nas ciências exactas. (1645)

Tendo referido a participação dos seus antepassados na indústria leiteira do estado, Deanne conjuga a sua profissão com as suas raízes açóricas quando, ao referir o seu futuro profissional, descreve as suas intenções e motivações da seguinte forma:

Estou a estudar os efeitos da emissão de gás metano pelas vacas leiteiras. Várias vacarias estão a utilizar equipamento próprio para captar o gás metano do estrume (biomassa) de vaca, para depois convertê-lo em energia renovável. Os benefícios são notáveis. É minha intenção auxiliar os produtores de lacticínios da Califórnia a lidar com o labirinto de regras e leis ambientais que existem actualmente. Quero contribuir para que a herança dos nossos antepassados na indústria leiteira deste estado permaneça nas comunidades de descendentes de imigrantes dos Açores, um povo cujo esforço e conhecimento ultrapassaram tudo e todos. (1648-9)

* Imagem tirada do livro The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture do autor Alvin Graves.

Redefinindo a Identidade Cultural

Demonstrando, assim, uma grande sensibilidade para com a sua herança cultural e o reconhecimento inequívico das capacidades dos seus antepassados, Deanne Ferreira é uma jovem açor-descendente que, no contexto actual, está a redefinir a sua identidade cultural à luz dos novos paradigmas da contemporaneidade. Outro exemplo é Márcia Dinis, que se apresenta como “O ser jovem e luso-americana na era da globalização” (I: 181-190), descrevendo os afazers do seu dia-a-dia e os parâmetros da sua identidade da seguinte forma:

Levanto-me e tento fazer um jogging matinal todas as manhãs. Vou às aulas, faço umas horas de trabalho part-time, e às vezes jogo futebol ao serão. Depois, vou para casa e falo ao telefone com a minha mãe. Estas conversas são a melhor parte do meu dia porque me acalmam e me dão a oportunidade de falar a minha língua materna, o português… Na faculdade, escolhi o curso de Estudos Globais. Se perceber melhor a nossa sociedade global, talvez possa ajudar a minimizar os malefícios da mesma, enquanto ajudo a promover os benefícios. Ao mesmo tempo, estou a especializar-me em Português. Estudo a língua, a literatura e a cultura. Sou luso-americana, sou mulher e tenho 21 anos. (181)

Mais à frente no seu artigo, a jovem Márcia faz o seguinte o balanço do seu mundo e da sua identidade pessoal e cultural, afirmando:

Sou uma pessoa privilegiada. Acredito plenamente que esta era da globalização tem levado os jovens a sentir orgulho pela sua herança cultural… A bandeira portuguesa por cima da minha cama, a tatuagem do açor nas minhas costas, as peças de louça tradicional penduradas na parede do meu apartamento lembram-me que estou acima da média, que sou especial porque sou portuguesa. (182)

Carol Gregory é outra jovem de ascendência açoriana na Califórnia que está a desbravar o seu próprio caminho e a forjar o seu retrato individual, em relação estreita com o passado colectivo da comunidade californiana. No artigo “A geografia da minha identidade cultural” (I: 191-212), Carol traça as seguintes coordenadas identitárias:

Como geógrafa, estou a estudar a dimensão geográfica e a localização específica dos marcos da cultura lusa na Califórnia. Refiro-me a salões, igrejas e outros edifícios, e a nomes de ruas, zonas comerciais, bairros e parques. A riqueza deste património é o tema da minha tese de doutoramento, onde faço um inventário da quantidade e localização destes marcos historico-geográficos, desta forma ilustrando e descrevendo o impacto da nossa presença na paisagem cultural deste estado. (195)

Tendo colaborado com a Portuguese Historical and Cultural Society (PHCS) de Sacramento, a autora afirma que o contributo de Portugal foi fundamental para a história e para “o conhecimento geográfico do Mundo” (191).

Para concluir, o exemplo de uma jovem que está a redefinir a sua identidade e herança cultural ao ritmo da contemporaneidade. Chama-se Felicia Viator e é autora do artigo “A Neta do hip-hop: uma luso-americana no mundo da música contemporânea” (II: 381-392). Esta jovem, que vive na cidade de San Francisco, é DJ e é conhecida pelo apelido Neta. Como mulher, Felícia considera-se “quase um oximoro na cena hip-hop” e explica que, desde o seu início, nos anos 70, a cultura hip-hop tem seguido o modelo masculino. Eis a surpresa e a satisfação do público que assiste às suas actuações. Descendente, pelo lado materno, de emigrantes do Pico, esta jovem explica que escolheu o nome Neta em memória da avó. De visita à ilha ancestral, Felicia descreve os seus sentimentos e as recordações da avó, redefinindo-se como pessoa à luz desta herança vital e marcante, quando escreve:

De visita ao Pico, deixei-me levar pelo mundo da minha e comecei a perceber a dor que sentia. Procurava compreender como ela e este mundo tinham sido, sempre, uma parte vital de quem eu sou. Logo de seguida, a alcunha de DJ que tinha escolhido, o nome pelo qual sou conhecida no mundo do hip-hop de toda a área de San Francisco, cristalizou-se. Subitamente, o meu espírito elevou-se e senti simultaneamente humildade e ousadia. Parti do Pico e dos Açores sabendo: “I am Neta.” (385)

“I am Neta

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Figura 11: Imagem da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.


BIBLIOGRAFIA

GOULART, T., coordenação (2003). The Holy Ghost Festas: A Historical Perspective of the Portuguese in California. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

GRAVES, A., (2004). The Portuguese Californians: Immigrants in Agriculture. San Jose, CA: Portuguese Heritage Publications of California.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2003). A Mulher nos Açores e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes I, II, III e IV. Ponta Delgada: Empresa Gráfica Açoriana.

SIMAS, R., coordenação e tradução (2008). A Mulher e o Trabalho nos Açores e nas Comunidades / Women and Work in the Azores and the Immigrant Communities, Volumes V e VI. Ponta Delgada: UMAR-Açores.

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