MARIA LAMAS E MARIA ARCHER: SÍNTESE DE DISCURSOS DIVERSOS NA UNIDADE DA AÇÃO
1. Nascidas no final do século XIX com um intervalo etário de seis anos (Maria Lamas, Torres Novas, 1893; Maria Archer, Lisboa, 1899), estas são certamente duas das mais lídimas e empenhadas representantes, entre nós, do movimento pela dignidade pessoal e pela afirmação social e cidadã da mulher.
2. Não são poucas as similitudes biobibliográficas entre Maria Lamas e Maria Archer: ambas encontraram na literatura e no jornalismo o arrimo mais eficaz, para combaterem por uma causa que só a distorção do patriarcalismo, confundindo a alegoria bíblica com determinações divinas ou naturais, a acomodação na incultura e o marialvismo podem justificar a sua tão tardia consecução histórica.
3. Conhecessem eles Aristófanes (450-386 a.C), o grande dramaturgo da Antiguidade, e tivessem lido, mesmo que apenas extractos, de A Assembleia das mulheres e de Lysastrata, peças em que o autor, preocupado com a reforma de Atenas em crise, evoca a possibilidade de delegar o poder nas mulheres atenienses, “cheias de carácter, de graça, de audácia, de sageza, em que o patriotismo se une à prudência”, tivessem lido tais textos e perceberiam quão fúteis e trágicas têm sido no decurso da história da humanidade as exibições masculinas da razão da força em detrimento do culto feminino da força da razão.
4. Quando a personagem do magistrado pergunta a Lysastrata “Como podereis vós, mulheres, acabar com tanta desordem no nosso país?”, esta responde-lhe sabiamente que usariam para o fazer a experiência que tinham de tecelãs: as desordens e as guerras desembaraçam-se com palavras tal como nós desembaraçamos um novelo de lã, pegando na ponta certa do fio e usando correctamente o fuso. O magistrado, não alcançando a alegoria, impetrou Lysastrata, refutando que as mulheres pudessem ser capazes de combater as desordens, quando não têm qualquer participação na guerra. Lysastra responde-lhe bruscamente: “Eh! miserável, acaso não sofremos nós mais do dobro com esse fardo, nós que, antes, criamos os filhos para vê-los partir para o exército?”
5. O desrespeito da mulher como fonte de vida, que afirma pelo seu direito à maternidade, incultamente transformado pelo homem num dever de procriação, tem, desde Aristófanes, pelo menos, marcado a educação ou, melhor , a pedagogia, no rigor etimológico dessa palavra que, originalmente, como se sabe, significava tomar conta de crianças e orientá-las para a vida futura no respeito pelos valores do passado. Exigir da mulher que ponha no mundo filhos, para satisfazer o instinto predador dos que fazem as guerras só para exibir o poder, é arrogar-se marialvamente como proprietário da existência alheia, vendo-a como materialidade transacionável e não, como a confirmação de que o ideal das criaturas humanas, expulsas do mítico paraíso, é serem companheiras e não, súbditas.
6. Companheiras, na acepção etimológica e na compreensão semântica daí derivada, isto é, companheiro/a é aquele/a com quem partilhamos o pão (cum+ pane-), assim cumprindo o desígnio dos humanos de, biblicamente, ganhar o pão com o suor do rosto.
7. Foi certamente por não terem encontrado nos homens de quem se divorciaram essa compreensão e dimensão de companhia que Maria Lamas e Maria Archer mais terão desenvolvido a sua responsabilidade social de lutar pela dignidade da mulher e pelo seu direito à igualdade cidadã com o homem.
8. O casamento, aos 17 anos, coincidentes com a proclamação da República, com o tenente de cavalaria, Ribeiro da Fonseca, foi para Maria Lamas a porta da entrada na diáspora, acompanhando o marido na comissão militar para a Huíla (Angola), antes de experimentar a amargura do exílio. Os três anos de vivências de África, donde regressou em 1913, inspiraram-lhe a novela Confissões de Sílvia, com que iniciaria a sua vida literária, sendo também motivação para a escrita do romance Diferenças de Raça, publicado em 1924.
9. A implantação da República terá sido para Maria Lamas um dos acontecimentos mais impressivos da sua vida, plantando-lhe no fulgor da juventude as sementes éticas com que conduziria a longa carreira de jornalista que iniciou, pela mão do escritor Ferreira de Castro, em O Século, de Lisboa, onde entrou, no regresso de Angola, para dirigir por vinte anos a revista do lar Modas & Bordados, onde assinou a coluna “O correio da Tia Filomena”, espaço pseudónimo para falar da condição feminina em Portugal.
10. Tia Filomena foi um dos pseudónimos com que começou a sua militância na causa da dignificação feminina, tendo usado também o pseudónimo Rosa Silvestre, para assinar dois livros para a infância, Caminho Luminoso e Para Além do Amor, o pseudónimo Maria Fonseca e o pseudónimo Serrana d’Ayre, para publicar poesia.
11. Essa militância levava-a a conjugar a sua actividade de jornalista com a de dinamizadora cultural, ora organizando exposições dos teares do Minho ora de tapetes de Arraiolos fabricados pelas reclusas da cadeia das Mónicas que, assim, aliviavam as suas condições de detenção.
12. Envolvida ao mesmo tempo nos movimentos associativos femininos, Maria Lamas será eleita, em 1945, presidente do Conselho Nacional das Mulheres, associação fundada na I República que o Estado Novo perseguia sem descanso. Esta função obrigou-a a viajar por todo o país, o que lhe permitiu reunir informações e experiências para a escrita do livro As Mulheres do meu País, publicado em 1948, ano anterior ao da sua participação activa na campanha à presidência da República do general Norton de Matos, sofrendo, por isso, a primeira das várias detenções que o regime de Salazar lhe impôs.
13. A este título seguir-se-ia, quatro anos depois, As Mulheres no Mundo, o que a tornou membro do Conselho Mundial da Paz, a partir de 1961, ano em que partirá para oito anos de exílio em Paris, onde conhece Marguerite Yourcenar, de quem traduziria As Memórias de Adriano, e onde, da janela de seu quarto no Hotel de Saint-Michel, apoiará os jovens do Maio de 68, passando-lhes baldes de água, para eles mitigarem os efeitos dos gases lacrimogéneos.
14. Ainda em Paris, adoptará novo pseudónimo, Helena Torres, sob o qual transmitirá pela Rádio Moscovo mensagens do Conselho Mundial da Paz aos portugueses, antes de regressar a Portugal na “primavera marcelista”, e, sempre solidária, se disponibilizar para testemunha de defesa da romancista Maria Isabel Barreno, no processo das “Três Marias”, quando já começavam a soprar tenuemente os ventos de Abril.
15. Octogenária, mas com o vigor da causa da liberdade por que longamente se bateu, apoia o 25 de Abril e é com justiça agraciada com a Ordem da Liberdade que junta à de Santiago da Espada que, em seu tempo, Óscar Carmona lhe tinha entregado. A dez anos do fim da sua caminhada, Maria Lamas via recompensada a sua militância pela igualdade dos direitos cívicos que defendeu com afinco na sua escrita literária e jornalística.
16. Só na pseudonímia Maria Archer não acompanhou Maria Lamas; na militância pelos direitos cívicos das mulheres, sim. Na pseudonímia, encontraríamos uma companheira para Maria Lamas em Irene Lisboa que, nascida um ano antes, publicaria bem mais tarde, em 1936, o seu primeiro livro, Um dia e outro dia…Diário de uma Mulher, com o pseudónimo João Falco com o qual também escreveu na revista Presença, depois de aí se estrear, quando ainda vivia na Suiça, com o pseudónimo Mara. Irene Lisboa usará ainda os pseudónimos Maria Moina e Manuel Soares, este sobretudo em ensaios de pedagogia, área em que também se destacou.
17. Foi nas páginas da Presença que José Régio, depois de chamar a atenção para a escrita de Maria Archer e de Fernanda de Castro, outra das escritoras da causa feminina tocadas pela diáspora e pelo sortilégio da África, se referiu àquele primeiro livro de Irene Lisboa e a um segundo com o título Outono havias de vir nos seguintes termos: “ Lê-os a gente e pensa: Mas porque é que todas as mulheres não têm escrito assim? Não escrevem assim?”
18. Não se estranhe, por isso, que Adolfo Casais Monteiro, em 1956, tenha escrito de forma tão encomiástica sobre Irene Lisboa: “É contudo o nome de um grande escritor – o da maior escritora portuguesa de hoje, sem discussão possível.” Mas estranhe-se que Casais Monteiro tenha passado ao lado da obra vasta e notável de Maria Archer, até porque coincidiu com ela no tempo e nos motivos do exílio brasileiro, que a escritora iniciaria em 1955.
19. Maria Archer, como deixei dito, tal como Maria Lamas, viverá, na companhia dos pais, na adolescência, três anos na Ilha de Moçambique (1910-1913) e, na juventude, dois anos na Guiné, em Bolama e em Bissau(1916-1918). A Moçambique, voltará já casada, entre 1921 e 1926, ano em que acompanhará o marido para Faro, donde partirão para viver em Vila Real de Trás-os-Montes até 1931. Terminados os dez anos de casamento, Maria Archer regressa a Lisboa, para junto dos pais, mas estes viviam, então, em Angola, para onde a jovem divorciada seguirá, juntando-se-lhes, em 1932.
20. Em Luanda, viverá Maria Archer por quatro anos, tendo-se estreado aí literariamente, em 1935, escrevendo um livro de novelas e de contos, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim Graça. Nesse ano, terminará também a sua vivência africana e já em Lisboa escreverá o romance África Selvagem(1935) com que se estreou na literatura colonial portuguesa e que lhe mereceu de vários críticos elogios como: “excepcional revelação literária”; obra suficiente “para impor Maria Archer como escritora, para consagrar os seus dotes de narradora perfeita”; “maravilhoso repositório do folclore negro”.
21. A esse romance de estreia seguir-se-ão Sertanejos(1936), Angola Film(1937), Viagem à Roda de África(1938), Colónias Piscatórias em Angola(1938), Caleidoscópio Africano(1938) e Roteiro do Mundo Português(1940). Tal como Maria Lamas, Maria Archer escreveu também para crianças, tendo ganhado o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 1938, com o livro Viagem à Roda de África. Escreveria ainda para o público mais pequeno dois ensaios, para que aprendessem a história de Portugal de forma lúdica. A África voltará, mais tarde, à ficção de Maria Archer que, entretanto, escreve o romance Aristocratas (1945), cujas história e personagens têm muito de autobiográfico, o que levou seus pais a romperem com ela, por se sentirem pejorativamente retratados.
22. Este romance vinha afinal confirmar a forma audaciosa como Maria Archer militava a favor da causa da dignificação da mulher portuguesa, o que levou João Gaspar Simões a comentar: “Não conheço mesmo outra escritora portuguesa que à audácia dos temas e das ideias alie uma expressão tão enérgica e pessoal. O seu estilo respira força e solidez.”
23. Aliás, é a própria autora, já depois de ter experimentado a perseguição à sua escrita e aos seus livros, dois dos quais chegaram mesmo a ser apreendidos – Ida e Volta duma Caixa de Cigarros e Casa sem Pão – que, em 1952, dirá da sua obra até então produzida: “A minha obra literária tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher”.
24. A rebeldia do comportamento político e da escrita com que a manifestava, exibida no empenhamento com que acompanhou, em Lisboa, o julgamento do capitão Henrique Galvão, seu amigo e como ela africanista e opositor do regime, empurrou-a naturalmente para o exílio no Brasil, onde chegou em Julho de 1955. É a própria Maria Archer que, em entrevista ao Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em Janeiro de 1956, conta os motivos por que saiu de Portugal: “ Vim para o Brasil, tendo chegado no dia 15 de Julho de 1955, porque já não podia viver em Portugal. A ação da censura asfixiou-me e tirou-me os meios de vida. Apreenderam-me dois livros publicados, assaltaram-me com policiais a casa e levaram-me um original que ainda estava escrevendo, violência inédita em países de civilização europeia.”
25. Chegada ao Brasil, como tantos outros exilados portugueses, entre os quais Casais Monteiro, Carlos Maria Araújo, Sidónio Muralha, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Mário Henrique Leiria, iniciou, por assim dizer, a sua fase de jornalista, colaborando no célebre jornal O Estado de São Paulo. A actividade jornalística não a impediu de continuar a sua obra literária e ensaística. E assim é que, em 1959, publicará Os Últimos Dias do Fascismo Português, livro que lhe foi inspirado pelo julgamento já mencionado de Henrique Galvão. Seguem-se Terras onde se fala Português , África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963).
26. Respigando e aumentando algumas das passagens do Roteiro do mundo português, que escreveu em 1940, como alusão à exposição colonial do mundo português desse ano, Maria Archer escreverá Herança Lusíada, livro valorizado pelo prefácio de Gilberto Freyre, no qual destaca o “talento literário”, a “qualidade da observação”, o “poder de análise”, o “gosto pelo estudo do que do ponto de vista europeu é exótico, pitoresco ou bizarro.” Com este livro encerrou-se praticamente a obra literária de Maria Archer, que o 25 de Abril de 1974 não trouxe a Portugal. Para aqui voltou apenas em 1979, doente, para vir morrer, praticamente na miséria, num lar em Marvila, em 1982.
27. Quem conheça a vasta obra de Maria Archer acompanha convictamente o comentário resumptivo que dela foi feito: óptima romancista e um valor inigualável na literatura feminina do século XX.
28. Os sinos que por ela dobraram, em 1982, e por Maria Lamas, no ano seguinte, tinham o mesmo som daquele “augusto bronze” garrettiano, que nos tange na memória a odisseia da nossa diáspora da qual estas duas mulheres, agentes activas do resgate português da cidadania feminina, foram símbolos maiores.
29. No caso de Maria Archer, não lhe reconheceu a pátria, como deveria ter reconhecido, o seu bom combate pela liberdade e pela igualdade da mulher, porque a pátria, tantas vezes, faz que nos sintamos, como escreveu Irene Lisboa, em O Pouco e o Muito: “Cada um de nós é um ilhéu – ilhotas flutuantes em mares profundos e longuíssimos de solidão. De abandono.”
30. Esse abandono, a que Maria Archer foi votada nos últimos anos de vida, denunciou-o o poeta moçambicano Sebastião Alba no poema “À morte de Maria Archer”:
“Esta melancolia andou desocupada
Que há sempre um guizo mudo
O do cordeiro que seus pastos nos evocam
Direi da minha vida
Não é plena mas contém-me
E ao devaneio em que lhe sou infiel
Já sem nenhum recato
Da sua
Que uma escápula no asilo
Lhe suspendeu pela gola a sombra.”
31. Façamos, então, a síntese dos discursos diversos de Maria Lamas e de Maria Archer, que se cruzaram em espaços e tempos, que reclamavam unidade de acção na busca da igualdade social e da cidadania plena da mulher enquanto mátria, donde a pátria deriva e se alimenta dos filhos que a tornaram, que a tornam ditosa, como cantou o nosso poeta maior!
32. Libertemos, pois, a mater dolorosa e tornemo-la mater gloriosa, para que a vida não seja punição, não seja dominada pela violência, pela dor, antes, fruição de companhia e partilha do pão. Se não, a diáspora não terá valido a pena!
Porto e Forum da Maia, 24 de Novembro de 2011.
Salvato Trigo
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