segunda-feira, 5 de março de 2012

Maia 2011 - Isabel Ponce de Leão MIGRAÇÕES FEMININAS

Migrações no feminino

Isabel Ponce de Leão
Professora Catedrática
Universidade Fernando Pessoa
CLEPUL
Porto

Aprendí pronto que al emigrar se pierden las muletas que han servido de
sostén hasta entonces, hay que comenzar desde cero, porque el pasado
se borra de un plumazo y a nadie le importa de dónde uno viene o qué
ha hecho antes.
Isabel Allende

O nome de Maria Helena Vieira da Silva andará sempre associado à diáspora
portuguesa, penitente percurso em que Mulher e Pintora assumem a
cumplicidade e a comunhão fraterna inviabilizadoras de destrinça. De facto, a
pintora não existe sem a mulher ou, parafraseando Heidegger, “o artista é a
origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro”.

Suiça, Paris, Rio de Janeiro, o mundo são lugares onde – onde sente
saudades pátrias e onde reaprende a viver. Artista e mulher carrega o estigma
do isolamento mesmo na sua terra que se lhe tornou madrasta e muito
tardiamente reconheceu a sua genialidade.

A migração foi, porventura, a sua evasão, como aconteceu com outros artistas
e escritores portugueses com quem se relacionou. Refiro-me a Sophia e a
Agustina que, sem abandonarem o solo pátrio, fogem, pela escrita para outras
paragens sempre carentes do regresso. Um outro jeito, não menos doloroso,
de migrar.

Em Longos dias têm cem anos, a propósito de uma visita a casa de Sophia
de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís escreve: “Arpad disse que estavam
ali as três mulheres de mais talento em Portugal. […] Maria Helena pintava,
eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia” (Bessa-Luís, 2009: 15-16). E
afastando-se, de imediato, da vertente artística para a humana acrescenta: “A
Sophia era um caso – uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável.
Eu era um caso – incerteza apaixonada. Vieira era um caso – uma mulher
justa” (Bessa-Luís, 2009: 16).

Estas foram as três mulheres que, incorporando o mistério da criação,
marcaram artística e culturalmente o Portugal do século XX pois perseguiram
com uma notável akribeia o conciliábulo ética / estética através de uma
produção assinalável, em termos quantitativos e qualitativos, instaurando
assim dinâmicas salvívicas. De facto, “se todos os artistas da terra parassem
durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota

de música, fazia-se um deserto extraordinário” (Bessa-Luís, 2008: 20). É
justamente esse deserto que, por elas e com elas, nunca aconteceu dando-nos
conta, como deram, de que “O ponto de partida de todos os sistemas estéticos
deve ser a experiência pessoal de uma emoção particular” (Bell, 2009: 22).
Assim conceberam obras que provocam o que Clive Bell denomina “emoção
estética”.

Colho Vieira da Silva como protagonista e convoco os olhares de Agustina
e de Sophia, que sobre ela recaem, de forma a relevar uma tríade feminina
enformadora de uma diáspora física e mental.

Maria Helena, a pintora, a “mulher justa” a que alude Agustina que, sobre
ela escreveria ainda: “Falava pouco. Olhava, sobretudo. Olhava com uma
intensidade fria, como se estivesse a atravessar um rio e se dividisse entre o
perigo e o prazer. O fundo arenoso onde se recortavam peixes prateados dava-
lhe aquela expressão suspensa e maravilhada; mas, de repente, o remoinho
da água trazia a noção da forte corrente, e, um pouco mais, era a dúvida,
um temor concentrado, a razão alertada. O rosto exprimia angústia, os olhos
abriam-se mais e ganhavam uma cor cristalina” (Bessa-Luís, 2008: 303-304).

Ora este retrato de Agustina ao convocar a linguagem do olhar para
caracterizar Vieira da Silva vem, muito justamente, ao encontro da ideia de
que, e seguindo os ditames de Dilthey (1994), o potencial criativo, longe de
se instituir um processo psíquico especial, emana do quotidiano, do contracto
intrínseco entre o ser humano e as suas vivências, de opções definidas e
assumidas perante as vicissitudes da vida que ora espanta, ora atemoriza

A arte de Maria Helena Vieira da Silva teve a peculiaridade de, citando
Malraux, “transformar a vida em destino” instituindo-se viagem gerada na
legítima emigração de quem procura o espaço favorável à sua expressão sem
nunca negligenciar a sensibilidade marcada pelas suas raízes.

O seu génio pessoal encontrou em Paris o meio adequado à libertação,
à ruptura com uma tradição figurativa sem negligenciar, contudo, a praxis
essencial de analogia com a realidade. É aí que, durante a década de 30,
integra a geração da Nova Escola de Paris mantendo, contudo, alguma
independência de certos –ismos de uma Europa efervescente.

Estava lançado o destino de Maria Helena na sua ligação ao abstraccionismo
propondo obras onde era clara a fragmentação de motivos figurativos num
processo destrutivo das formas significantes em demanda do onírico. Refiro
uma arte que, privilegiando formas e cores, nega temas e figuras e bane o
compromisso com a realidade. Sou, contudo, cauta ao pensar o
abstraccionismo em Vieira da Silva que a própria considera, em entrevista
concedida em 1978, ter sido “uma escolha difícil, mas tinha que partir de
dentro, devia ser uma escolha racional. Para pintar pensando com a cabeça e
fazendo com a mão”. Tinha consciência, Maria Helena, de que “a obra de arte
reflecte-se na superfície da consciência […] [e que] a análise dos seus
elementos constitui uma ponte em direcção à vida interior da obra” (Kandinsky,
2006: 25-26). O seu percurso culmina na abstracção a partir da figuração. Os

pontos, elementos originais da pintura e as linhas oriundas dos seus
movimentos, entram nos planos que têm no quadrado a sua forma
esquemática e original, jogando-se em vibrações dramáticas de modo
a “encontrar a vida, tornar sensível a sua pulsação e verificar a ordem de tudo
o que vive”, evidenciando “que é um trabalho de síntese que conduz às
revelações exteriores” (Kandinsky, 2006: 143). Pode-se afirmar que na sua
pintura “la catégorie spatiale a basculé la catégorie temporelle. Espace et
temps ont révélé leur étroite liaison” (Vallier, 1988: 21). “Depois, Maria Helena
era também consciente de que a sua arte era o repositório de experiências
vividas – onde se destaca a emigração para França – e de uma saturada
atenção aos clássicos” (Ponce de Leão, 2011).

Uma “mulher justa” (Bessa-Luís, 2009: 16) lhe chama Agustina, uma “mulher
[…] que sabe, duma maneira rápida e sem drama, o que é aceitar o mundo: é
perder o direito à inocência” (Bessa-Luís, 2008: 187). Talvez por isso abandona
a Europa no deflagrar da 2.ª Guerra Mundial. Abandono físico porque o
país e a cidade acolhedores – Brasil, Rio de Janeiro – recebem com ela a
amargura que qualquer guerra provoca. É aí que pinta “Le Désastre” (1942),
representação horrenda do conflito europeu, tumultuária, titânica e “vazia
crucificação, onde o acento futurista dum Rossolo parece petrificar-se em gente
feita de estilhas, sob um céu estilhaçado, ou hangar, estrutura mecânica de
um mundo absurdo” (França, 1988: 7). É no Brasil, mas com o pensamento
na Europa que Maria Helena, através deste quadro, bem como de “Le feu”
(1944) e de “Histoire maritime-tragique” (1944), faz a iniciação da sua obra
maior. “Le Désastre” (1942) é “a última pintura possível de uma época, de um
clima pictural, e a primeira a anunciar outra época e outro clima, e a propor-
lhe, pelo absurdo, uma negação de figuração em si própria sensível, mas
terminal” (França, 1988: 8). Trata-se de uma pintura de agouros em que o
encontro da artista com o real se faz de inquietações, interrupções, factos e
memórias. Retomando a figuração pinta os movimentos terríveis da guerra
numa linguagem de occídio só suplantada pelo “Guernica” de Picasso.

Maria Helena demanda, contudo, a verdadeira cidade dos homens e é pelo
paisagismo ou naturalismo abstracto que se liga à cultura dos espaços em
que viveu – França, Brasil, Portugal – inequivocamente testemunhados na
diáspora de uma vida, de uma obra. As suas telas espelham a cumplicidade
que não o corte com as modalidades tradicionais da figuração em sistemas
progressivos sem que com isso pactuem com a utópica ablação do real.
Contornando hierarquias formais, cria os seus valores exclusivos e emana-os
num idiolecto próprio que, fraccionando os espaços, lhes confere uma fluidez
e infinitude metafóricas que demandam a ambiguidade. Nesta ambiguidade
constrói espaços cheios e vazios que convivem na globalidade do quadro
conferindo-lhe movimento. Entre o delírio e o rigor, geometrias várias insinuam
os diferentes sentidos, enquanto processos pictóricos sugerem distâncias e
movimentos.

Enredam-se telas e fios tecidos em memórias longínquas de Portugal,
Brasil e França. E há portas e pontes, gares e baptistérios, bibliotecas e,
muito particularmente labirínticas cidades. É o mundo pictórico das linhas
verticais e horizontais estabelecedoras do dialogismo tempo / espaço na

construção do onírico. Aí se encontram as “Bibliothèques”, por ventura o
seu motivo mais obsessivo (1947-1974), arquivo de memórias, arquivo do
mundo no sentido borgeano do termo. Arquivo do tempo também. Camões,
Pessoa, Sophia, René Char, o tal dos presságios, comparecem como pontos
matriciais de uma trajectória em construção. É através desses lugares de
arquivos de experiências e memórias que ensaia o acesso às cidades, às suas
cidades que se vão descobrindo na tela num lento processo de construção
de espaços múltiplos. Depois surge o traço que fende os limites, estilhaça
a unidade agilizando a bidimensionalidade numa demanda polissémica.
Assim “estratigrafiza a paisagem, desmultiplica construções, arruamentos,
filamentos, estruturas, movimentos. Como se a cidade vista fosse apenas
uma teia de sugestões erguida com a sabedoria de Ariadne” (AA. VV., 2010:
30). “Maisons Grises” (1950), “Blanche” (1958), “Lisbonne” (1962), “Palais des
glaces” (1965), “Gaya” (1971) são apenas algumas das telas-teia que encerram
catedrais, bibliotecas, prédios, jardins, povoamentos de labirínticas cidades.

É delas que se parte num trajecto que vai do deslumbramento perturbador
e inquiridor face ao próprio acto de pintar, até ao esplendor encantatório de
um universo que a pintora vê como locus obsidente e a que abre toda a sua
disponibilidade interior com vista à reedificação.

A ideia de diáspora – voluntária e involuntária – é filão matricial da pintura
de Vieira da Silva. Há uma permanente demanda de novos horizontes na
determinação com que pinta o ausente como se estivesse presente, numa
manifesta sede de infinito.

A esta obsessão pela viagem, a este desejo de transcendência arduamente
tecido cabe a noção de heterotopia a que alude Foulcault. Trata-se de uma
procura dos “lugares que estão fora de todos os lugares” com a capacidade e o
poder “de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos
que são em si próprios incompatíveis” (Foulcault, 2001: 418). Este desejo, esta
procura dos espaços encontra eco na obra de Sophia, a tal mulher “que tem a
cortesia de parecer vulnerável.” (Bessa-Luís, 2009: 16),
com quem Maria Helena privou e comungou afinidades de lutas e vivências.
A sua pintura projecta-se em poemas labirínticos onde observador e pintor,
poeta e leitor se fundem e confundem no espaço insaciável e sempre iniciático
apenas com paralelo na teia de Penélope. Assim escreve Sophia (2004a: 68)
em “Maria Helena Vieira da Silva ou o Itinerário Inelutável”

Minúcia é o labirinto muro por muro
Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia –
Itinerário é o labirinto

Como o subir dum astro inelutável –
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos
Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidades
Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio.

Processo de construção labiríntico, obsessivo, sofrido. Sobre este poema diz
Agustina: “é uma das mais belas poesias de Sophia de Mello Breyner, em
que ela deixa conhecer a fascinação: uma certa rigidez da forma acentua a
distância, e assegura a imutabilidade” (Bessa-Luís, 209: 92).

Uma outra diáspora. Os mesmos temas e as mesmas formas ligam as duas
artes e encorpam o movimento duplo de abertura e fechamento que remete
para tudo de quanto paradoxal tem a arte. A voz poética reconstrói uma
paisagem interminável de espaços conhecidos mas não particularizados
por entre os quais o vazio espreita. Os poemas de Sophia e os quadros de
Maria Helena remetem para a concomitância de itinerários paradoxais, como
paradoxais são as figuras que os percorrem – incessante peleja pela libertação
do olhar e do pensamento num também incessante fazer e desfazer da teia.

Também em “Tríptico ou Maria Helena, Arpad e a pintura” (Andresen, 2004b:
10) se presentifica o carácter pictórico da poesia de Sophia bem como a
afeição pela arte de quem, de alguma maneira, provoca a já referida “emoção
estética”:

I
Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro

II
Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro

III
Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro

Sophia aproxima-se aqui de um geometrismo onde os actores, sendo também
espectadores, se desdobram entre dois espaços e duas funções. O dentro
e o fora convergem na tela numa clara alusão ao período em que o casal
viveu no Rio de Janeiro. São dessa altura numerosos auto-retratos bem
como o que poderei chamar um processo meta-pictural uma vez que Arpad,
aquele que “pinta como quem ama a realidade – submetendo-a a puríssimos
fragmentos”, (Bessa-Luís, 2009: 21), pintou Maria Helena na feitura de telas,

que fazem parte do seu espólio, numa curiosa troca e acumulação de papéis.

Há na arte de Vieira da Silva uma projecção subjectiva da sua experiência
geracional, instituída pelo trabalho, o dever, a pesquisa que demanda campos
heterotópicos de igual modo observados em certos poemas de Sophia que
acabam por questionar o poder do espaço. O passado ensina “que a evolução
da humanidade consiste na espiritualização de numerosos valores. Entre
estes valores a arte ocupa o primeiro lugar” (Kandinsky, 2008: 48), sobretudo
se, como é o caso, existe uma relação entre a obra e a emoção que a gerou
no artista ou a emoção que ela é capaz de fomentar no espectador / leitor.
Nas telas-teia de Maria Helena e nos poemas-teia de Sophia “adivinham-se
catedrais, labirintos, bibliotecas, jardins, vendavais, arrebatamentos de estio”
(AA. VV. 2010: 32) produtos de itinerâncias físicas e mentais.

Depois há o olhar de Maria Helena, já apreciado por Agustina e também
referido por Sophia (Andresen, 1994: 31):

Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida

A pintora não existe sem a mulher. Atenção à arte. Tal como Athena pugnou
por Ulisses, Maria Helena pugnará por ela na demanda de Ítaca. Uma Ítaca
perdida na migração e no exílio mas achada pela razão (“Athena”), pela
sabedoria (“coruja”) e por muito muito trabalho que para a pintora foi “um
baptismo e uma extrema-unção […] a sua fé e o seu sacramento maior”
(Agustina, 2009: 172). De facto, a leitura das suas composições, para além
do prazer estético, provoca a percepção de um voluntário hard labour que
desconstrói, para de novo edificar, a paisagem citadina. “Quando Maria Helena
pinta ‘como se obedecesse a uma força superior’, a paz é um absurdo, como
a realidade concreta é um absurdo que é preciso recrear para que se torne
afecto do homem, obra sua” (Bessa-Luís, 2008: 22). Deve-se-lhe o fenómeno
geracional genesíaco do esplendor do abstraccionismo português, que em
muito influenciou nomes como os de Manuel Cargaleiro e Mário Cesariny.

A quebra de identidade, a orfandade cultural, o desenraizamento afectivo
que a sua condição de migrante podia carrear foi contrariada pela arte que,
pospondo molduras jurídicas e institucionais, se tornou elemento coadjuvante
de uma atitude de denúncia ou de chamada de atenção mais branda para
uma visão holística da realidade. Por outro lado, é também à sua condição
migrante1 que Maria Helena deve muita da sua habilidade artística gerada em
experiências vivenciais, em aprendizagens diversas nos espaços que percorreu
como refere Agustina: “Deixou Portugal Vieira da Silva por esperanças que as
montanhas parecem cortar de um lado e conceder o mar pelo outro. São assim
os portugueses, curiosos do que a terra lhes proíbe e ansiosos do mar que lhes
promete. Boas terras pisou Vieira da Silva; escolheu-as decerto para que o

1

Opto por esta denominação em detrimento de e/imigrante, por me parecer que, afinal, o
emigrante se torna imigrante no país de acolhimento, concitando em torno de si os dois
conceitos, ainda que os seus direitos e deveres tenham, naturalmente, características de índole
diversa, direi mesmo, quase antagónicas.

contentamento andasse a par com o trabalho”. (Bessa-Luís, 2009: 135-136)

De facto, “aquele que emigra é como o que vai ao fundo dos abismos onde
nem a morte chega sem medo, para daí trazer uma imagem amada, a imagem
da terra em que se criou. Passa-se muito fora de Portugal para que Portugal
seja mais nosso” (Bessa-Luís, 2008, 93). Talvez por isso seja sistemática
a Presença de Portugal nas telas de Vieira da Silva. Assim, o elemento
paisagístico da terra pátria presentifica-se em obras como “Pour Expliquer
Sintra à Arpad” (1932), “Alentejo” (1960) “Porto” (1962), “Vieux Lisbonne”
(1968), “Lisbonne Bleue” (1969); o pendor folclórico-etnográfico é visível
em “Santo António de Lisboa” (1949) ou “Arraial” (1950); num magnífico díptico
– “A Poesia está na Rua I / II” (1974)2 –, evocador da Revolução dos Cravos
surge uma outra cidade, espaço da liberdade colectiva que a poesia convoca.
Um Portugal policromo, perfeitamente identificado no seu “Testament” (S/A,
1994, s/p) onde se pode ler:

Je lègue à mes amis
[…]
un vermillon pour faire circuler le sang allègrement
un vert mousse pour apaiser les nerfs
un jaune d’or : richesse
[…]

“A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade.
Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro demoníaco. Todo o
artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica” (Bessa-Luís, 2008: 22). Poesia,
prosa e pintura com nome de mulher e “para a mulher, não existe a noção de
criação, ela está dentro do mistério, faz parte dele” (Bessa-Luís, 2009: 168).
Cá dentro ou lá fora, migrantes reais ou ficcionais, Maria Helena, Sophia e
Agustina afagam todo esse mistério que envolve a diáspora, “tendência fatal
dos portugueses que se manifesta desde o primeiro bocejo” (Bessa-Luís, 2008:
94). Podem olhar, sem parcimónia umas para as outras; são conscientes de
que a arte serve “para abolir o absurdo” (Bessa-Luís, 2009: 22) e que, tal como
refere Picasso – “Pinto igual que outros escriben su biografia. Los cuadros
terminados son las páginas de mi diário” –, configura a escrita do eu.

Bibliografia

AA. VV. Abstracção. Arte Partilhada. Lisboa: Fundação Millenium bcp, 2010.

2

Sobre esta obra, escreve Agustina (2009, 78): “Quando Sophia Breyner, então deputada
socialista, pediu a Vieira para que ela fizesse um cartaz para festejar o 25 de Abril, o resultado
foi enigmático. Maria Helena pintou, conforme a sua primeira inspiração, algo como uma
igreja em ruínas. […] Nesse momento, em que devia reportar-se a um festim, como Sócrates
convidado a comparecer em casa de Ágaton, onde estarão presentes tanto os retóricos, como
os pedantes e os ricos de Atenas, nesse momento Vieira pinta uma igreja; isto é: deixa-se ficar
solitária, não estranha à festa, mas fiel à sua íntima condição de pessoa imperdoável, como foi
o próprio Sócrates na sua actualidade”.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Dual. Lisboa: Caminho, 2004a.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner Andresen. Ilhas. Lisboa: Caminho, 2004b..
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner Andresen. Musa. Lisboa: Caminho, 1994.
AZEVEDO, Fernando de. Vieira da Silva o longínquo desastre. Colóquio Artes, n.º 77.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1988, pp. 14-16..
BESSA-LUÍS, Agustina. Dicionário Imperfeito. Lisboa: Guimarães Editores, 2008..
BESSA-LUÍS, Agustina. Longos Dias têm Cem Anos. Lisboa: Guimarães Editores,
2009.
BELL, Clive. Arte. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.
DILTHEY, Wilhelm. (1994). Sistema de Ética. S. Paulo: Ícone, 1994.
FRANÇA, José-Augusto. Vieira da Silva 1958. Colóquio Artes, n.º 77. Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 5-12.
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, pp.411-422.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2005.
KANDINSKY, Wassily. Gramática da Criação. Lisboa: Edições 70, 2008.
KANDINSKY, Wassily. Ponto, Linha, Plano. Lisboa: Edições 70, 2006.
S / A. Presença de Portugal na obra de Arpad Szenes e Vieira da Silva. Lisboa:
Fundação Arapad Szenes – Vieira da Silva, 1994.
PONCE DE LEÃO, Isabel. Maria Helena Vieira da Silva. Ulyssei@s.
[em linha], Março de 2011. Disponível em searchText=vieira+da+silva&sortBy=nome&page=base_recorddetail&baseid=2&search
=+Pesquisar+&recordid=53>. (Consultado em 10.04.2011).
VALLIER, Dora. Pour Vieira da Silva 1988. Colóquio Artes, n.º 77. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1988, p. 21.

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