domingo, 6 de setembro de 2009

Ivone Ferreira A IDENTIDADE DA MULHER PORTUGUESA EMIGRADA NOS MEDIA

Ivone Ferreira
Investigadora
A emigração não é, para os e as portugueses e portuguesas, algo que possam dizer que desconhecem.
Logo nos bancos da escola, nos primeiros anos de estudo, nos falam, ou pelo menos nos falavam, de grandes homens, em pequenos barcos, que desbravaram mares e descobriram novos mundos. Esses grandes homens, com pequenos barcos, eram portugueses. Uns voltaram, outros foram ficando, outros ainda, quiseram partir, já por caminhos ou mares conhecidos.
Do séc. XV ao séc. XX nunca deixámos de encetar viagens. De procurar novas aventuras e paragens. Primeiro o norte de África, depois o Cabo Bojador, o caminho marítimo para as índias, a descoberta do Brasil.
A colonização de territórios em África, na Ásia, nas Américas, fizeram com que os e as portugueses e portuguesas se fossem multiplicando e dividindo por tempos e percursos de emigração.
A História, tal como a conhecemos, fala sobretudo de homens emigrantes. De homens valentes e corajosos. De homens viajantes e aventureiros. A história de algumas, ou serão muitas (?) mulheres que, ultrapassando barreiras e medos, também inscreveram a sua vida no mundo das partidas, mais do que das chegadas, ainda está por escrever…
Nesta minha reflexão chego a um passado mais recente. Um passado onde os media nos fornecem, de uma forma parcial, é certo, mas não de somenos importância, a matéria-prima, a partir da qual se constrói a identidade, que não é mais do que, de forma muito simplificada, a forma como nos definimos perante o mundo.
Se nos situarmos nas teorias construtivistas da comunicação, encontramos vários autores a defender que os media são os construtores de uma nova realidade, a partir da realidade dos seus conhecimentos.
Como? Ou porquê?
Sobretudo devido a três factores: os media reflectem uma realidade da qual são parte;
a linguagem neutra é impossível…
e a organização própria dos meios de comunicação social, nomeadamente ao nível da produção de notícias, a tal obriga.
O que é que, sobretudo este último item, quer dizer? Apenas isto: a acção mediadora dos jornalistas exerce-se através de diversos factores que compõem uma rede complexa de condicionalismos e constrangimentos e, por isso, as notícias são construídas com um determinado conteúdo, e não outro, uma determinada forma, e não outra, e assumem, globalmente, modelos determinados.
Os media têm o poder de representar, apresentar perspectivas da realidade, conformar determinados aspectos do mundo. Logo, eles são instrumentos de poder e, muitas vezes, instrumentos do Poder.
Por isso, os media podem escolher: ou são o contra-poder, (como defende Elihu Katz, por exemplo) ou são meros reprodutores do status quo e, assim, estão ao serviço do Poder…
Não me vou deter aprofundadamente nestes aspectos, mas parto deles para a análise que, mais adiante faço de alguns conteúdos que pesquisei, nomeadamente, numa revista semanal portuguesa, editada no espaço nacional, de grande tiragem, a revista “Visão” e num jornal português editado nos círculos de emigração, o “Luso Jornal”.
De acordo com tudo o que escrevi anteriormente, a relação entre a “realidade do acontecimento” e a “realidade” veiculada pelas notícias é uma questão que se situa na ordem da representação. E para além da representação, um dos efeitos das notícias sobre a nossa cognição pode ser a “construção da realidade social”. Assim, a informação funciona como construção da realidade.
É com a “construção da realidade” baseada nestes pressupostos que agora vos proponho esta viagem curta, mas exemplificativa, para podermos começar a perceber como olham os media portugueses, em território nacional ou na emigração, o género feminino.
Partimos da afirmação de Tomaz Tadeu da Silva, “quem tem o poder de representar, tem o poder de definir e de determinar a identidade (…) Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação”[1].
Tenho consciência de que os estudos sobre migração, que distinguem as questões relacionadas com o género, são relativamente recentes e que existe uma certa “invisibilidade” das mulheres nesta questão. Acredito que será pelo facto de, pelo menos até à década de 70 do século passado, o estereótipo da mulher migrante se conotar, sobretudo com o estatuto da esposa, ou da mãe.
O termo “emigrante” está, quase sempre, associado ao homem, porque era dele a decisão. Era dele o direito, era dele o dever de sustento familiar. As mulheres integravam-se no sub-grupo das “famílias”.
Em Portugal, só a partir de 1975 é que começamos a encontrar o conceito de migrantes laborais a ser atribuído também ao género feminino.
Mais de quarenta anos depois, de 1975 até 2009, como são vistas e noticiadas as mulheres portuguesas migrantes laborais pelos media portugueses? Em Portugal e nos países de imigração? Que papéis atribuem às mulheres, esses mesmos medias? Como ajudam a construir, ou constroem mesmo, a sua imagem?
Este é um estudo que tenho vindo a desenvolver, não tão rápido como gostaria, por razões de tempo, mas também de investimento financeiro. Trago hoje aqui dois exemplos. Breves. Muito breves e com uma amostra muito reduzida. Mas que servem de exemplo.
A revista Visão, media editado em Portugal.
Análise de cinco edições que cobrem a última semana de Novembro e todo o mês de Dezembro de 2008.
Escolhi esse espaço temporal por ter deduzido que, pelo facto de abarcar a época natalícia, poderia existir uma maior apetência pela emigração portuguesa, tendo em consideração a importância do Natal, assumidamente a “festa da família”, para a grande maioria dos portugueses, que impele à reunião ou motiva a famosa e bem portuguesa “saudade” dos que estão longe.
Nos cinco números analisados apenas uma “Breve”, na página 22 da edição nº 825, de 25 a 31 de Dezembro. Esta “breve”, com cerca de 6 linhas, tinha como título “Condecorada”. O seu teor é tão curto que o vou ler “A directora da Escola Portuguesa de Macau, Edith Silva, condecorada com a Medalha de Mérito Educativo daquela região autónoma da República Popular da China, no nono aniversário da sua fundação. A cerimónia decorrerá em Janeiro.”
Se considerarmos emigrante o maior inspirador ensaísta português Eduardo Lourenço, encontramos nesse mesmo número, um depoimento do próprio, em meia página, sobre os factos que considerou mais relevantes em 2008.
Se considerarmos emigrante a pintora Paula Rego, também sobre ela encontramos uma “breve” na página 121 do nº 824 da Visão, de 18 a 24 de Dezembro de 2008. A “breve” continha 7 linhas e noticiava que a pintora tinha realizado 17 ilustrações para um livro de contos de Eric Jordan.
Reafirmo que o corpus específico do trabalho que aqui apresento é, como já referi, apenas uma ínfima parte do que se pretende levar a cabo, mas serve como exemplo demonstrativo.
A revista Visão tem cerca de 120 páginas por edição, das quais entre 30 a 35 estão reservadas à publicidade.
Quanto ao Jornal da emigração que foi escolhido, foi o “Luso Jornal” Está, em formato pdf, na totalidade, publicado na internet em http://www.lusojornal.com/, o que ajuda a uma consulta fácil.
O Luso Jornal tem edição francesa e belga. As edições analisadas foram as belgas.
O Luso Jornal na versão para os portugueses residentes na Bélgica, tem 37 edições on line. Dessas 37 edições apenas 7 (5,2%) trazem, na capa, fotos e notícias de mulheres portuguesas.
Duas (2) dessas capas são preenchidas com vencedoras dos concursos de misses, uma (1) é preenchida com a fotografia da artista Lenita Gentil, em digressão pelos círculos de emigração portuguesa, nessa altura, uma (1) outra, com uma pequena ginasta portuguesa com sucesso, ainda uma (1) com uma mulher polícia portuguesa, na Bélgica, e duas outras capas com candidatas portuguesas ao desempenho de cargos políticos nas comunidades belgas onde residem ou trabalham.
Em relação às edições estudadas, são três (3).
Dezembro de 2008, Janeiro e Fevereiro de 2009.
A edição on line de Dezembro de 2008 é a trigésima quinta edição, com um total de 24 páginas.
Na página 5, a três colunas, pode ler-se uma notícia sobre uma iniciativa da Escola Europeia de Bruxelas, a que se chamou de “Uma melodia por Timor”. A dar apoio a essa iniciativa, a emigrante Ana Ochoa, que é a representante da Caixa Geral de Depósitos. Ana Ochoa será, com certeza, alguém com grande intervenção na comunidade, uma vez que aparece, com direito a foto, em duas das três edições analisadas.
Uma outra mulher que também tem direito a notícia breve, na página 10. Preenche uma coluna de meia página. É notícia porque inaugura um novo espaço do seu restaurante. Título: “Restaurante Cabo Verde inaugura novo espaço”. A proprietária é Maria Luísa Duarte e tem direito a uma pequena fotografia.
Breves também são as duas outras notícias da página 10 que fazem menção ao Prémio Dinamismo atribuído a Teresa Paranhos, secretária da Associação AEFB e ainda, na notícia em que se refere que o Prémio Revelação foi atribuído ao português Eugénio Guedes, uma foto dele com a sua mulher, a quem faz questão de referir e a quem “agradece o apoio”.
Mais uma “breve”, sem foto, na página 16 a 1 coluna, informando que a pianista Manuela Gouveia dá vários concertos no Porto e em Lisboa.
A três colunas, com direito a foto, uma reportagem com uma cantora cabo-verdeana, Mariana Recuus.
Em 24 páginas… é tudo!
Em Janeiro, edição nº 36, duas “breves” sobre Rita Dias, nova dirigente na Direcção Regional das Comunidades nos Açores e outra “breve” com o título “O PSD quer maior participação das mulheres”. O título, bem como o conteúdo, não explicita onde e a notícia tem 1 coluna de meia página.
Vemos, isso sim, na página 9, meia página, 4 colunas, com uma entrevista à Professora de Música Ana Luísa, uma belga que fala e escreve português, conforme refere a entrevista.
A artista brasileira Dioni Costa também tem direito a ocupar toda a página 11 e, na página 2, aí está uma foto de Sónia Aniceto, uma dos anteriores vencedores do Prémio Talento…
Finalmente a 3ª e ultima edição estudada, a do nº 37. Na página 6, uma notícia com foto “Comunidade Portuguesa ofereceu uma Banda por Timor”, notícia que já tinha sido aflorada na edição de Dezembro, de novo com a portuguesa Ana Ochoa, para além da menção a duas outras portuguesas envolvidas na acção. Na página 8, finalmente, reportagem sobre duas mulheres empresárias com actividades viradas para a comunidade. São elas Inês Blu Rodrigues e Marta Horta. Têm direito a fotografia.
Pagina 10, na secção de “Cultura” a brasileira guitarrista Yamandu Costa e outra portuguesa, Manuela Valente, cantora há 13 anos em bares e outros locais de diversão.
Na página 12, notícia sobre uma associação em cuja direcção, de seis membros, conforme refere a notícia, dois são do género feminino.
Posso então afirmar, de forma mais ou menos segura, que em 480 páginas da revista Visão não tivemos uma notícia de fundo sobre a comunidade emigrante portuguesa espalhada pelo Mundo inteiro, e, apenas uma “Breve” sobre uma mulher emigrante portuguesa, a residir e trabalhar em Macau.
Em três edições on line do Luso Jornal, um órgão de comunicação no interior de uma comunidade emigrante portuguesa…também se contam pelos dedos as referências a mulheres. Quando são feitas são-no sobretudo em notícias breves. Muitas vezes colocando-as no meio das profissões consideradas, desde sempre, conformes com a própria representação que se tem das mulheres: activista em causas de benemerência, donas de restaurantes ou esposas dedicadas.
Concluindo: a partir de diferentes lógicas e opções, as práticas dos media interagem com a realidade, reafirmando ou contestando percepções socialmente partilhadas, mas, quase sempre, dando origem a formas consensuais de pensar e de debater os assuntos. E, por isso, os resultados que aqui mostrei, não são estimulantes, não são prometedores.
O interesse dos media pelos percursos pessoais ou profissionais das mulheres, pelo seu papel na sociedade, não é capaz, neste momento, de estimular uma verdadeira mudança no modo de pensar ou de agir face à evolução que o género feminino tem vindo a protagonizar, em todos os campos, mas, concretamente, na área da emigração. Os avanços, os progressos no percurso de muitos milhares de mulheres portuguesas que hoje são emigrantes, não estão a ser cabalmente registados ou referenciados pelos media no espaço nacional, ou que se encontram junto das populações portuguesas emigrantes e que poderiam, pelo seu contacto mais informal e próximo com esses grupos, ser um dos principais veículos de afirmação dos e das portugueses e portuguesas que tanto podem e têm contribuído para que o nome de Portugal seja mais conhecido. Muitas vezes, nós e eles próprios, esquecemos a sua importância, o seu valor e não ajudamos na construção da sua auto estima.
O contributo mais forte, para essa melhoria de auto-estima, quem sabe se não poderia ser dado pelos media?
Não será oportuno lançar a ideia de uma campanha de sensibilização dos media para a emigração?
Fica a proposta.
Tenho dito.

Espinho, 7 de Março de 2009

Ivone Dias Ferreira

[1]Do livro: Identidade e diferença. Organizado por Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000 p. 73-102

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