Joana Miranda
Universidade Aberta/Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais
O estudo das comunidades imigrantes em Portugal tem privilegiado as dimensões económicas e sociais em detrimento da dimensão psicológica. Este estudo preocupa-se com essa dimensão, analisando vertentes fundamentais na vida de mulheres migrantes de uma das comunidades mais representativas no país: as mulheres Brasileiras, procurando reconstituir as suas memórias e identidades, as dificuldades que sentem na "sociedade de acolhimento" bem como os seus projectos de vida.
Diversas questões nortearam o estudo: Como recordam estas mulheres o seu passado no Brasil? Por que imigraram? Que dificuldades de integração sentiram aquando da sua chegada a Portugal? Como as ultrapassaram? Como perspectivam a sociedade portuguesa e como pensam que são perspectivadas? Quais são os seus projectos futuros? Pretendem regressar ao Brasil ou ficar a viver em Portugal?
O estudo envolveu investigação empírica, utilizando metodologia qualitativa - análise das sete entrevistas semi-directivas realizadas a mulheres brasileiras.
A análise dos dados privilegiou os seguintes aspectos: passado do grupo, motivos/razões da imigração, práticas culturais do grupo em Portugal (música, práticas alimentares, actividades religiosas, estilo de vida), dificuldades aquando da chegada a Portugal, auto-representação do grupo, representação da sociedade portuguesa, proximidade/distância social em relação à sociedade portuguesa, atitudes do grupo face à sociedade portuguesa, projectos pessoais de retorno/permanência em Portugal e questões de integração e identitárias.
Entre as diversas conclusões a que chegámos verificámos que apesar dos problemas iniciais de integração e da saudade do Brasil, as mulheres brasileiras desenvolvem ao longo do tempo estratégias de integração na sociedade portuguesa e consideram-se em geral integradas nessa sociedade.
Narrativas de mulheres imigrantes brasileiras em Portugal - Trajectórias e Projectos de vida
Joana Miranda
1. A feminização da imigração
O imigrante típico foi, durante muitos anos, perspectivado como homem, e até há três décadas atrás a migração feminina era alvo de pouca atenção (Casas & Garson, 2005: 2). Esta realidade resultou da predominância de um modelo de família patriarcal que perspectivava as mulheres como dependentes dos homens, chefes de família e responsáveis pelo sustento do lar (Morokvasic, 1984). Igualmente importante é o facto de até ao final da década de sessenta, as mulheres não predominarem no mercado de trabalho e de o discurso académico em diversos domínios do saber, nomeadamente na economia, na sociologia e na história (Borderías & Carrasco, 1984) veicular a imagem de que as mulheres eram economicamente inactivas, o que, por seu lado, influenciava as teorias migratórias.
Quer as perspectivas neo-clássicas, que analisam as decisões racionais dos indivíduos, quer as perspectivas que estudam os factores macro-estruturais subjacentes às migrações, salientam o papel dos homens migrantes como fonte de trabalho - trabalhadores e actores económicos - e negligenciam o papel desempenhado pelas mulheres. As mulheres eram relegadas para o espaço privado da casa, e a sua contribuição económica para a sociedade era amplamente ignorada (Oso & Catarino, 1996). As mulheres eram perspectivadas como "dependentes", migrando na qualidade de esposas, mães ou filhas de migrantes masculinos (Zlotnik, 1995: 229).
Mas outros factores contribuíram para a invisibilidade da imigração das mulheres. Assim, Zlotnik (2003) salienta o papel desempenhado pelas estatísticas, uma vez que não incluíam categorizações em função do género. O facto de a maioria das mulheres trabalharem na economia informal - serviço doméstico, cuidados pessoais e prostituição - contribuíu para que fossem subestimadas nos dados oficiais.
Em 1973-1974, na sequência da implementação na Europa de políticas de imigração restritivas e do fechamento das fronteiras a novos imigrantes, as mulheres dominaram os fluxos de entrada, apesar de continuarem a ser minoritárias em termos de stock de imigrantes (Zlotnik, 1995). Nos círculos políticos e académicos começou a falar-se em feminização da imigração na Europa (Lebon, 1979), sendo vários os autores (Golub, Morokvasic & Quiminal, 1997) que sublinham o carácter gradual desta tendência e o discurso da feminização da migração na Europa pode ser explicado, não apenas por um aumento real do número de mulheres nos fluxos populacionais, mas também pela aceitação do conceito de mulher migrante. Surgiu então, de forma gradual, a consciência de que a imigração não é um fenómeno temporário, mas que envolve grupos familiares que se estabelecem no país receptor. A figura da mulher continuou, no entanto, associada à reunificação familiar, e não à de um actor social e económico (Golub, Morokvasic & Quiminal, 1997; Morokvasic, 1984).
Na década de oitenta começou a tornar-se notório o papel activo desempenhado pelas mulheres. Diversas publicações chamaram a atenção para a sub-estimação do número de mulheres imigrantes, sendo a obra de Morokvasic, Birds of Passage are also Women (1984) uma referência clássica fundamental.
Para uma maior consciência das mulheres imigrantes foi importante uma abordagem analítica mais aberta no domínio dos estudos sociais, que proporcionou uma maior visibilidade da contribuição económica das mulheres. Assim, por exemplo, o trabalho de Delphy (1970) salientou que, para além da produção económica, existia um tipo adicional de produção - serviço doméstico no seio da família - responsável pela reprodução biológica e social do grupo.
Um outro factor que também contribuiu para a maior visibilidade das mulheres foi o facto de as migrações não mais serem consideradas como resultantes de uma decisão individual, mas, antes, de estratégias familiares e comunitárias (Stark, 1984). Para além do mais, o espaço da casa como uma unidade de análise no estudo dos fluxos populacionais conquistou relevância (Grasmuck & Pessar, 1991; Hondangneu-Sotelo, 1991).
Ocorreu, pois, uma mudança da perspectiva individual para a de que são o espaço familiar (household) e a comunidade as forças impulsionadoras dos movimentos geográficos. A mulher deixou de ser dependente para passar a ser uma decisora chave no processo migratório.
Foi surgindo uma maior consciência de que as migrações não têm o mesmo efeito e impacto nos homens e nas mulheres e de que uma exclusiva focalização nos homens não permite apreender as complexidades envolvidas. Passou a ter-se em consideração duas questões que antes eram totalmente negligenciadas: Que factores determinam a imigração das mulheres? (E que são diversos dos factores que determinam a imigração dos homens). Que impacto o processo migratório tem no estatuto das mulheres imigrantes?
A feminização da imigração é agora internacional e alguns autores chegaram a considerar a feminização da migração como uma das cinco características que definem a actual era das migrações (Castles & Miller, 1998). Mas estaremos, de facto, face a uma feminização da imigração à escala mundial, ou apenas face à feminização do discurso sobre migrações e a uma maior aceitação da imigração das mulheres?
Alguns autores explicam a feminização da imigração como o resultado de uma recomposição de capital à escala mundial. Como Sassen (2003) salienta, a deslocalização industrial e a transferência dos processos de produção para os países do Sul, fez com que fosse necessária menos mão-de-obra nas actividades industriais do Norte. O aparecimento de zonas duty-free aumentou o fluxo de mulheres dos países em desenvolvimento, particularmente da América Latina, da Ásia e das Caraíbas.
Ribas-Mateos (2002) relaciona o elevado número de mulheres que se estabeleceu numa economia de serviços (e, em particular, serviços domésticos, nicho em que focalizaremos a nossa análise) em expansão nas últimas décadas na Europa do Sul, com uma grande diversidade de factores: modernização, urbanização, tercialização, dinamismo do sector informal, importância das pequenas empresas e aumento do nível educacional dos mais jovens que os leva a rejeitarem trabalhos manuais. Focalizando-se sempre no contexto da Europa do Sul, com características bem diversas a este nível dos países nórdicos (em que a responsabilidade do cuidar é da esfera pública) e de outros países da Europa, a autora espanhola desenvolve uma interessante reflexão sobre o papel que as mulheres imigrantes vão desempenhar nas famílias em que se integram. Elas são contratadas para substituir as figuras tradicionais das mulheres da casa, pertencentes a classes médias e altas, figuras centrais nestas sociedades, mulheres essas que agora se dedicam às suas carreiras profissionais. A execução destas tarefas não exige qualquer qualificação e é culturalmente considerada da responsabilidade das mulheres. Elas são relegadas para a esfera doméstica de que as patroas saíram, vão desempenhar as tarefas da lida doméstica, tomar conta das crianças e dos idosos, em última instância, vão proporcionar bem-estar (Ribas-Mateos, 2002: 62). O seu papel é central para a família da Europa do Sul, em que continua a ser marcante a coexistência na casa de várias gerações, incluindo os jovens em idade adulta que adiam o casamento e a sua saída da casa dos pais, envolvendo-se frequentemente em trabalhos precários e/ou instáveis, e pouco preocupados em criar uma carreira profissional sólida (ibidem: 63).
Outros autores referem-se a "cadeias globais de assistência" de forma a explicar como numa situação global as mulheres são substituídas por outras mulheres nas tarefas habitualmente associadas a cuidados pessoais e afectos - as mulheres do país receptor são substituídas pelas mulheres imigrantes cujo lugar é, por seu lado, substituído pelas mulheres que tomam conta dos seus filhos no seu país de origem - avós, irmãs,... (Hochschild, 2000). Estas cadeias, na maioria das vezes, interligam três conjuntos de cuidadoras: uma mulher cuida dos filhos da migrante em casa, no país de origem, outra mulher cuida dos filhos da mulher que cuida dos filhos da migrante, que muitas vezes é a sua mãe ou uma filha mais velha que cuida dos irmãos e o terceiro elo da cadeia é a própria mulher migrante que deixa o seu país para cuidar dos filhos de profissionais liberais no primeiro mundo. Assim, estabelece-se uma cadeia de uma ponta a outra, entre classe, raça e nações, em que as mulheres mais pobres criam os filhos das mais ricas, enquanto mulheres ainda mais pobres (ou mais velhas, ou mais rurais) lhes criam os filhos. Hochschild (2000) chama, ainda, a atenção para o "padrão global do deslocamento do sentimento", uma vez que essas mulheres deslocam o amor que deveriam sentir e transmitir aos seus próprios filhos para as crianças de que cuidam. Hochchild (ibidem) salienta a mais-valia emocional, e constata que a assistência e o amor estão a ser distribuídos desigualmente pelo mundo. A autora indaga até que ponto os países do Primeiro Mundo não estão importando amor materno, como no passado importaram ouro, cobre, zinco e outros minérios dos países do Terceiro Mundo.
Sassen (2003) discute os fluxos migratórios Sul/Norte que extrapolam fronteiras das mulheres na economia informal, num quadro que ela designa de "contrageografias da globalização", uma vez que estando directa ou indirectamente associados à economia global, não se caracterizam por uma representação formal, operando com frequência fora da lei e dos tratados, e envolvendo, frequentemente, operações criminais (como no caso das redes de prostituição). Este tipo de economia, parcialmente desterritorializado, atravessa fronteiras, conectando diversos pontos do globo numa espécie de rede submersa, informal e ilegal, originando desregulamentação e precarização das relações de trabalho. Os recursos económicos gerados por estes processos são habitualmente sub-avaliados.
No contexto da nova economia, a expressão "mulheres globais" é utilizada, não só relativamente a empregadas domésticas, mas também a amas, enfermeiras e trabalhadoras do sexo (Ehrenreich & Hochschild, 2002).
Estas mulheres deixam os seus filhos com parentes ou em instituições no país de origem para migrar e trabalhar na Europa, configurando o que Hondageu-Sotello e Avila (1997) definem como "maternagem transnacional", uma vez que estas mulheres deixam os seus próprios filhos nos países de origem, para cuidar dos filhos de outras mulheres.
Alguns autores utilizam o termo "servos da globalização" para se referirem às mulheres que saem do seu país para trabalharem nos serviços domésticos (Salazar, 2001).
O papel das mulheres na economia é duplo - papel activo no mercado de trabalho do país receptor e chefes de família e papel no país de origem, mediante o envio de remessas. Para os países desenvolvidos, em particular, o papel das mulheres migrantes na manutenção da identidade das comunidades migrantes, ou no estímulo da integração da família, é de grande importância (Zlotnik, 1995: 230).
Alguns círculos académicos e políticos estabeleceram a ligação entre a feminização da imigração, o papel activo das mulheres como agentes económicos e de desenvolvimento e o empowerment (aumento de estatuto). De facto, a participação das mulheres na economia dos países de origem e receptor, o envio de remessas para o país de origem e a manutenção de espaços familiares transnacionais deveria traduzir-se num automático aumento do seu estatuto. Mas tal não acontece, na realidade. Esse estatuto pode mesmo diminuir, pelo facto de, frequentemente as mulheres terem que exercer trabalhos precários, que não exigem qualificações, trabalhos invisibilizados porque, tendo lugar no âmbito privado, são pouco valorizados, de baixo estatuto social.
Concentrando-nos nas empregadas domésticas verificamos que participam de uma relação de identidade mediada pela lógica de servidão: para os patrões servir é algo natural, configurando uma relação de exploração e de iniquidade. A função ideológica da ocupação baseada em rituais de diferença e maternalismo vem perpetuar um sistema de estratificação que articula, necessariamente, as categorias "género", "classe" e "etnia" (Lisboa, 2007: 815). A desigualdade concretiza-se e fundamenta-se a partir de comportamentos e tratamentos específicos: elas devem chamar os patrões pelos sobrenomes (e títulos) enquanto que as empregadas são designadas pelo seu primeiro nome; a forma como o próprio espaço da casa é gerido e em que é ou não permitido às empregadas permanecer traduz essa mesma desigualdade.
Os movimentos feministas, nas últimas décadas, têm conseguido que as mulheres façam várias conquistas em relação à sua saída do espaço privado para a esfera pública. Apesar de ter demorado dois séculos para se concretizar, e de não se ter constituído um movimento social, a entrada das mulheres na esfera pública colocou milhões de mulheres em movimento. É preocupante que mais de cem anos depois das grandes conquistas em relação aos direitos das mulheres, na passagem do capitalismo industrial para o financeiro, esteja a ocorrer, à escala global, um movimento contrário à saída prevista para a esfera pública: cem mil mulheres movem-se anualmente em todo o mundo em fluxos migratórios, para assumirem trabalhos domésticos na esfera privada (Lisboa, 2007: 817). No auge da era informática, com a revolução tecnológica reestruturando o mundo do trabalho como e por que se intensifica de tal forma um mercado informal por muitos considerado arcaico e ocupado exclusivamente por mulheres (Lisboa: ibidem)?
O facto de muitas mulheres terem começado a ocupar cargos no espaço público deveria demandar um movimento circulatório de reciprocidade, de complementaridade: homens permanecendo no espaço privado, dividindo as tarefas domésticas e cuidando dos filhos. Mas tal não se verifica. No lugar do esperado "homem novo", que divide as tarefas domésticas com a sua esposa e as tarefas ligadas ao cuidar da família, surgem no cenário milhares de "novas servas".
Longe dos seus espaços de origem, muitas vezes longe dos seus filhos, estas mulheres enfrentam inúmeras dificuldades. Lisboa (2007: 810-811) sintetiza algumas delas: falta de comprometimento por parte dos patrões em relação à regularização dos papéis, documentos ilegais ou visto de permanência, estando ilegais no país não possuem acesso aos serviços básicos e, quando adoecem, não possuem um plano de saúde que cubra atendimento e tratamento, o não pagamento de horas extraordinárias, os baixos salários, violência e abuso sexual por parte de alguns patrões, obrigação de fazer serviços extra a amigos e parentes dos patrões, sobrecarga de trabalho, principalmente nas casas em que, para além de fazerem todos os tipos de tarefas, ainda cuidam de crianças e de idosos, relações com os patrões, que confundem maternalismo com relações laborais, o que implica falta de garantia de direitos, dificuldade de adaptação a novos costumes, língua, clima, alimentação, entre outros.
Em Portugal, os estudos sobre mulheres imigrantes são dispersos e pontuais, não existindo uma verdadeira continuidade de interesse pelo estudo da temática. O estudo das migrações não tem contemplado uma perspectiva de género, assumindo que as características das migrações nacionais se podem generalizar a todo o universo (Peixoto, Casaca & Figueiredo, 2006). Os estudos realizados sobre mulheres imigrantes traduzem perspectivas económicas e sociológicas sendo a perpectiva psicológica habitualmente negligenciada.
O projecto de investigação que desenvolvemos e que contou com o financiamento do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas procurou colmatar duas das lacunas que identificámos nos estudo sobre imigração em Portugal: analisar a imigração de mulheres numa perspectiva psicológica.
2. A comunidade Brasileira em Portugal
A nossa definição de mulheres imigrantes são mulheres que nasceram noutros países e que imigraram para Portugal e não uma segunda geração de mulheres nascidas em Portugal e filhas de pais imigrantes.
Neste estudo procurou-se compreender as três comunidades de mulheres imigrantes mais numerosas em Portugal - Brasileira, Cabo-verdiana e Ucraniana a partir da recolha das histórias de vida de oito mulheres de cada uma das comunidades. Neste texto apenas nos referiremos às mulheres Brasileiras.
No gráfico 1 são apresentados os valores relativos às três comunidades imigrantes mais numerosas no país. Os dados indiciam que a comunidade Brasileira é a mais numerosa em Portugal, apresentando um valor de 66354, sendo o número de mulheres Brasileiras (34520) superior ao número de homens Brasileiros (31834). De notar que nas várias comunidades de imigrantes em Portugal a proporção de homens é, regra geral, superior à proporção de mulheres.
Padilla (2005) refere que, entre as motivações que levam os brasileiros a procurar Portugal, inclui-se a imagem da "velha pátria mãe", os laços histórico-coloniais, a corrente de retorno da emigração portuguesa para o Brasil (dos próprios e dos seus descendentes), o idioma comum, a curiosidade natural em relação a Portugal e à Europa e uma certa familiaridade com a cultura portuguesa. Mas são também factores determinantes o facto de não ser exigido um visto de entrada, a existência de redes sociais que dão apoio ao imigrante - ter amigos, conhecidos ou familiares que tornam mais fácil o momento da chegada, a grande diferença de salários entre os dois países bem como as imagens optimistas transmitidas pelos meios de comunicação social no Brasil, exibindo oportunidades económicas e de emprego em Portugal (ibidem, 2004: 1-2).
Tal como salientado pela autora, os brasileiros como imigrantes não são um grupo novo em Portugal, mas durante a última década e, em particular, durante o último quinquénio, operou-se uma mudança no perfil do imigrante típico. A primeira vaga de imigrantes era essencialmente constituída por pessoas qualificadas, com predominância para os dentistas, informáticos e publicitários, e em resultado da pressão por eles exercida, a sociedade portuguesa realizou adaptações e mudanças a vários níveis, tais como a reforma da carreira de odontologia ou modernizações no âmbito da publicidade e da informática (Peixoto, 1999). Mas, ainda de acordo com Padilla (ibidem: 2), a nova vaga apresenta qualificações mais baixas e uma mais limitada inserção sócio-profissional, trabalhando na construção civil, restaurantes, limpezas e comércio.
3. Metodologia
Realizámos realizadas entrevistas semi-directivas a vinte e quatro mulheres das três comunidades (oito delas brasileiras), testemunhas de diferentes vagas e modos de inserção na economia e na sociedade portuguesa.
Todas estas mulheres nasceram no Brasil e imigraram para Portugal num dado momento das suas vidas. Todas desenvolvem funções indiferenciadas nas áreas da limpeza e da restauração, não pretendendo este estudo analisar mulheres representativas da comunidade, mas tão só analisar histórias que ajudem a compreender algumas das dificuldades sentidas por essa mesma comunidade. Todas as mulheres residem na área da Grande Lisboa. Procurámos que fossem entrevistadas mulheres que se encontrassem em situações diversas a nível das seguintes variáveis:
-Idade
-Estado civil
-Número de filhos
-Religião
-Formação escolar (apesar de todas exercerem funções indiferenciadas, as formações escolares são diversas)
-Mulheres que imigraram por iniciativa própria/que imigram com o marido (e em resultado de uma decisão do casal)/que imigraram para se juntar ao marido/companheiro.
-Tempo de permanência em Portugal
4. Resultados
Cada entrevista foi analisada e alvo de um estudo de caso que não incluiremos neste texto em que apresentaremos apenas dados globais relativos à comunidade. Os dados apresentados referem-se a caracterização da amostra e a apenas duas das várias dimensões analisadas: Trajectos migratórios (situação anterior ao projecto migratório para Portugal, projecto migratório em Portugal e redes migratórias) e projectos de vida.
4.1. Caracterização da amostra
As entrevistadas têm idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos. Em termos de estado de origem, seis das oito entrevistadas são naturais de Minas Gerais, sendo uma do estado da Rondónia e uma da Baía. As estatísticas demonstram que existe uma significativa imigração do estado de Minas Gerais para Portugal. Padilla (2005: 5) refere que os primeiros imigrantes brasileiros tiveram origem em Minas Gerais e, especificamente, em General Valadares, considerada uma cidade provedora de imigrantes brasileiros para o mundo.
Em relação ao estado civil, seis entrevistadas são casadas, sendo uma divorciada e uma solteira. Residem em diferentes localidades da região norte de Lisboa, uma na zona de Sintra e sete na margem Sul do Tejo. Os seus agregados familiares compreendem entre duas e seis pessoas. Curioso notar que nenhuma vive sozinha. O número de filhos varia entre zero e três filhos. Seis entrevistadas trabalham nas limpezas e duas em restaurantes. Os locais de trabalho são diversos, todos eles situados na zona da grande Lisboa, estando as remunerações compreendidas entre 460 e 525 euros mensais. A questão remuneratória é a questão da entrevista relativamente à qual é maior a resistência de resposta. De facto, quatro mulheres não respondem à questão da remuneração.
Em termos de religião, seis têm religião católica e duas religião evangélica. Num caso a imigração proporcionou uma mudança de religião: Taciene refere: "Tenho...evangélica. Minha mãe é evangélica e então...Quando ela veio para cá passar férias, eu também passei. No Brasil eu era católica. Mudei porque...sei lá, para mim ficou...mais...feliz".
No caso de Marilza a imigração tornou-a mais religiosa (no sentido de mais ligada a Deus). Marilza refere: "Melhorou mais, sei lá, fiquei mais apegada em Deus. Me sentia muito sozinha". Para Erika e Maria da Glória sucedeu o oposto, a imigração afastou-as da igreja. Erika explica: "Eu sou evangélica mas…, lá no Brasil eu era evangélica, só que ultimamente eu não sou praticante… [Mas porque não tem tempo ou porque está desmotivada?...] Olha… deve ser por estar desmotivada, porque tempo eu tenho, tempo eu tenho! [risos] É importante…mas tem hora que parece que falta uma força assim… tem hora que… não entendo."
Nenhuma das mulheres tem filiação política. Marilza refere: "Não, porque eu não percebo nada... [...] Lá no Brasil, não, lá no Brasil a gente já percebia...o PSB, o PSDB...a gente já percebia um bocado. Aqui não...não".
Nenhuma das mulheres pertence a grupos desportivos mas Francisca e Maria da Glória pertenciam a clubes desportivos no Brasil. Francisca refere: "Aqui ainda não. No Brasil era o Cruzeiro, né? Cruzeiro Sporting Clube que tinha como adversário o Atlético Mineiro".
A formação escolar está compreendida entre o 6º ano de escolaridade e o curso de Contabilidade (curso com a duração de três anos), tendo uma das mulheres frequentado o primeiro ano do curso de Enfermagem.
4.2. Trajectos migratórios
4.2.1. Situação anterior ao projecto migratório para Portugal
Para todas as mulheres Portugal foi o primeiro país destino do movimento migratório e também para a maioria não existe qualquer projecto de imigração para outro país. Assim, o movimento migratório tendo Portugal por destino revela-se um destino bem circunscrito e definido e não uma etapa de uma trajectória migratória mais ampla.
Com excepção de uma mulher todas as demais trabalhavam no Brasil em actividades diversas, sendo de salientar que duas delas (Erika e Francisca) geriam os seus próprios negócios - padaria e fábrica de lingerie, respectivamente. Sete das mulheres (com excepção de Francisca) auferiam no Brasil remunerações inferiores às actuais, o que por si só não implica que todas estejam satisfeitas com o que fazem. A insatisfação sentida relaciona-se com o tipo de trabalho desempenhado (referimo-nos às mulheres que trabalham em limpezas e não às duas que trabalham em restaurantes e que não reportam insatisfação com o tipo de trabalho) e com a décalage entre a formação escolar de duas mulheres e o trabalho nas limpezas. Erika e Neusa são precisamente as duas mulheres com habilitações mais elevadas e que referem insatisfação neste aspecto: Erika refere:" Mas o que eu tenho é vontade de estudar, mas não tenho vontade de continuar a limpar casa toda a vida não… [risos], entendeu?... Eu tinha vontade de trabalhar no que gosto, eu gosto de enfermagem".
A insatisfação com o trabalho relaciona-se também com o número de horas de trabalho. Maria da Glória diz: "É o dia todo a trabalhar" mas, de facto, a média de horas de trabalho (oito horas) não é superior à média de horas de trabalho das portuguesas.
Com excepção de Francisca, que imigrou para se juntar aos filhos em Portugal, todas as outras mulheres imigraram em busca de uma melhor situação económica.
4.2.2. Projecto migratório em Portugal
Portugal foi escolhido por algumas mulheres pela língua comum e, logo, pela maior facilidade de comunicação e por influência de familiares que já cá estavam (no caso de Francisca, eram os próprios filhos que cá estavam) e que, directa ou indirectamente, incentivaram estas mulheres a deixar o seu país, a atravessar um oceano e a emigrarem para Portugal. Todas se recordam com precisão do dia em que chegaram de avião, data que ficará para sempre marcada nas suas memórias. Marilza é a mulher que está há mais tempo em Portugal - oito anos e Taciene a que está há menos tempo - nove meses no momento da entrevista. Erika fez a viagem sozinha, deixando no Brasil o marido e os filhos (tendo o marido vindo mais tarde ter com ela), Taciene e Marilza vieram sozinhas, mas tinham alguém que as esperava. Leila, Francisca, Joana, Neusa, Maria da Glória vieram acompanhadas. Quase todas contaram com o apoio da família e dos amigos e esse apoio foi fundamental na decisão, mas outras não contaram com esse apoio (caso de Erika). No caso de Marilza, a família apoiou, mas os amigos não: "É assim, os meus sogros apoiaram. Minha mãe apoiou (que eu só tenho mãe, meu pai é falecido), meus irmãos também [Tem quatro irmãos]. Seis, comigo sete. E a irmã dele [do marido] também apoiou. Mas em termos de amigos, não, ninguém...toda a gente dizia "Vocês são malucos!", "vocês vão caçar chifre em cabeça de cavalo!" (vocês vão à procura de algo que não existe).
Quando chegaram a Portugal todas ficaram na casa de elementos da família que já estavam no país e todas mudaram de casa tendo conseguido viver em casas melhores do que as iniciais: Joana refere: "Agora é mais barato. Um quarto para nós, um quarto para minha filha, a sala, cozinha e casa-de-banho. ‘Tou satisfeita com a casa, não tem nada a ver com a primeira situação". Erika, Taciene, Leila e Joana habitam em casas arrendadas, mas Francisca, Maria da Glória, Marilza e Neusa, apesar de inicialmente terem vivido em casas arrendadas, com o tempo conseguiram adquirir casa própria, tendo contraído empréstimos à banca para as adquirir, empréstimos esses que vão sendo pagos com as suas remunerações.
4.2.3. Redes migratórias
Todas as mulheres excepto Erika (que só tinha uma tia em Portugal no momento em que chegou) contaram com uma rede de apoio no país, rede essa essencialmente composta por familiares e em menor número por amigos. Todas entraram no país com um visto turístico de três meses, estando algumas legalizadas e outras ainda em processo de legalização, o que faz com que não usufruam de direitos dos cidadãos portugueses como acesso gratuito ao serviço nacional de saúde.
4.3. Passado/Projectos futuros
Nem todas as mulheres referem acontecimentos do passado que as tenham marcado. É o caso de Erika e de Taciene. Algumas mulheres evocam acontecimentos negativos do seu passado no Brasil: "Ah, eu tinha oito anos… uma tempestade veio e levou tudo, levou a casa toda… [Mas não foi nessa altura que o seu pai perdeu tudo?] Não, ele já tinha perdido… Antigamente [as tempestades tropicais] eram bem piores… [Às vezes também é a nossa própria percepção das coisas, não é? Quando uma pessoa é criança tem mais medo, não é…] É, é mesmo. Tem mais medo… Tive muito medo" (Joana). Marilza evoca acontecimentos diversos da sua vida pessoal como o dia em que o pai faleceu ou o dia do aniversário em que partiu a cabeça na escola. Leila recorda vitórias de um clube local.
Outras mulheres recordam acontecimentos nacionais como o processo de impeachment de Collor de Melo (Maria da Glória e Francisca).
O Brasil é importante na identidade de algumas mulheres (caso de Taciene), sendo em alguns casos o Brasil entidade mais abstracta, país de pertença, e noutras o Brasil como o lugar em que está a família, e nestes casos qualquer outro país poderia ser importante desde que fosse lá que residissem as famílias. Erika refere: "É importante, porque a minha família está lá. Porque, se eu não tivesse ninguém lá, eu preferia viver aqui. Tem a ver com as relações que tenho lá, não com o país. Se eu não tivesse a minha família, para mim ser brasileira, portuguesa, era indiferente!"
Para outras o Brasil não assume importância: "É assim, é bom ser brasileira por causa do meu jeito assim. Só que pelo meu país não 'tá valendo a pena ser brasileira. Não 'tá valendo a pena. É um país tão grande e tão...mau"(Neusa).
Para algumas mulheres, símbolos como o hino e a bandeira são importantes. Francisca refere: "Sou apaixonada pelo nosso hino brasileiro". Para outras mulheres, pelo contrário, estes símbolos não assumem qualquer relevância:
Não é em geral a recordação do país que ajuda a superar as dificuldades mas a recordação de quem se ama e que se encontra nesse país distante.
A maioria das mulheres (com excepção de Erika que é a única que sabe quando regressará: "Ainda este ano. Eu penso no final deste ano...até meados do próximo ano, no máximo" e que é a única mulher que não voltaria a tomar a mesma decisão) não tem um projecto de retorno ao Brasil. De resto, nos casos em que esse projecto existia, ele foi significativamente reformulado em termos de data de regresso (caso de Francisca), ou simplesmente, esquecido.
5. Discussão
Neste projecto as nossas entrevistadas foram chamadas a contar os seus trajectos migratórios, a evocar um passado mais ou menos distante no país de origem, a falar sobre o seu presente na dita sociedade de acolhimento, das dificuldades que enfrentam e dos desafios que se lhes colocam no local de trabalho, na esfera familiar e no seu quotidiano de relação com os indivíduos e com as instituições (aspecto este não contemplado neste texto). Foram, ainda, estimuladas a elaborar sobre um futuro antecipado e sobre os projectos de vida que nele se inscrevem.
É precisamente neste eixo temporal em que se articulam três momentos que as identidades se constroem e reconstroem. Elas transformam-se e reajustam-se em relação a um passado significativo, povoado de memórias mais ou menos marcantes, a um presente evanescente no qual se joga a questão da integração na sociedade receptora e a um futuro antecipado em que se inscrevem projectos de vida mais ou menos definidos em termos de conteúdos, de timings, projectos de permanência ou de retorno ao país de origem. Este foi, pois, antes de mais, um trabalho sobre identidades, conceito híbrido, complexo, fragmentado que assume particular sentido e potencialidades em relação às mulheres imigrantes, actores sociais cuja identidade resulta da sua dupla condição de mulheres e de imigrantes, categorias sociais habitualmente alvo de discriminação.
Por entre percursos marcados por conflitos internos (e alguns externos com os nacionais e com os imigrantes de origens diversas) estas mulheres vão-se embrenhando em processos de mudança, afirmam-se, diferenciam-se, escondem-se, negoceiam, antagonizam-se, tornam-se cúmplices, jogam, reconstroem-se, desenvolvem estratégias identitárias (no sentido em que Camilleri-1991 se refere a estratégias identitárias) de estar e de ser que se revelam diferentes de mulher para mulher. Algumas refugiam-se no passado e intensificam a importância das raízes, mistificando-o, imbuindo-o de saudade e de nostalgia. São as memórias das avós, das mães, dos colegas, dos amigos de rua, dos tempos de escola, da geografia dos locais que contextualizaram determinados acontecimentos relevantes: "Gosto da ilha como espaço, tem coisas muito boas...Nunca tinha saído da ilha, ela é grande".
São as memórias de acontecimentos da vida pessoal como o casamento, acidentes pessoais, como partir a cabeça, a morte dos pais ou acontecimentos que marcaram as vidas nacionais: a eleição de Lula da Silva, o impeachmente de Collor de Mello, o desmembramento do espaço da ex-união soviética, o dia em que Cabo Verde se tornou independente. Estas memórias de episódios estão imbuídas de sentimentos de alegria e de dor e são, precisamente, essas emoções com que foram vivenciados que os tornam mais memoráveis.
Outras mulheres, pelo contrário, distanciam-se do passado, separam-se dele e procuram tornar-se cidadãs do mundo: "Eu não pego no passado, porque é museu que guarda passado, porque tudo o que eu fiz está feito, está feito. Eu não tenho arrependimento de nada e procuro viver o hoje".
Para muitas o passado é já um lugar distante que corre o risco de se dissipar, um cenário trémulo e provisório que são os outros que ajudam a compor: "Recordações que eu tenho de Cabo Verde é muito poucoxinho...só me lembro de uma rocha e de uma praia! De resto não me lembro de mais nada. Com três anos, também...Mas oiço falar, de pessoas, familiares que...vieram mais tarde e que falam sobre isso".
Para outras, ainda, o passado é o lugar onde se nasceu mais não é do que isso- um lugar: "Cabo Verde foi onde eu nasci. Mas não passa muito disso".
Para muitas os símbolos (sejam eles oficiais como a bandeira ou o hino ou outros aspectos interpretados como símbolos, como a comida, a língua, falar o crioulo) revestem-se de significado e traduzem o apego emocional à nação, tornando-se verdadeiros marcos da diferença.
Relativamente aos percursos em Portugal, verifica-se que, com o tempo, muitas das dificuldades iniciais são superadas e as mulheres conquistam melhores condições de vida que estão muito associadas aos processos de regularização e de aquisição de residência. A regularização dá-lhes acesso a um leque de direitos que, antes, lhes estavam vedados. Verifica-se uma melhoria a nível habitacional (de casas mais degradadas e com menos espaço para casas com mais espaço e melhores condições, de casas com rendas mais elevadas para casas com rendas menos elevadas e condições similares, de casas partilhadas com amigos e familiares para casas exclusivamente habitadas pela família nuclear, de casas mais afastadas dos locais de trabalho para casas mais próximas dos locais de trabalho, de casas arrendadas para casas compradas).
A melhoria é também notória a nível das condições de trabalho, conseguindo trabalhos mais bem pagos, com melhores horários de trabalho, menos exigentes, com patrões mais solidários. No entanto, em geral, as mudanças ocorrem no seio de sectores considerados "femininos", como o do trabalho doméstico e, de certa forma, o da restauração.
As redes de apoio constituídas por familiares (mais visíveis no caso dos brasileiros e cabo-verdianos) e amigos, apesar de, em geral, não integrarem mais de dois, três elementos, desempenham uma função de suporte particularmente importante no momento da chegada. O apoio pode revestir-se de diversas formas: psicológico, apoio no encontrar o primeiro emprego, partilha de casa, comunicação das regras e lógicas inerentes à sociedade, familiarização com os processos burocráticos de legalização,... Por vezes esperava-se contar com o apoio de pessoas que nem chegaram a aparecer e são outras pessoas que ocasionalmente se vão conhecendo que se vêm a revelar pontos de apoio: pessoas que se conhecem na estação dos comboios, nos locais de trabalho, na rua.
Por vezes tem-se familiares em Portugal que nem se sabe onde vivem e que não são, de facto, elementos reais da rede. Curiosamente, os nacionais são, em muitas situações, os verdadeiros elementos da rede e muitos dos elementos das redes das mulheres são outras mulheres (amigas ou familiares), sendo também em grande número as decisões de imigrar influenciadas por outras mulheres (amigas e familiares).
A dimensão de risco da imigração é patente em algumas entrevistas. Muitas mulheres vieram sem saber o que as esperava. Morokvasic (2006: 8) refere-se a uma estratégia de risco-evitação ("risk-averting") associada à migração de acordo com a qual se foge de uma situação no país de origem e se optimiza o impacto dos riscos transnacionais gerindo oportunidades e obstáculos dos dois países num espaço social transnacional.
Nenhuma das mulheres refere ter recorrido ou ter recebido ajuda de serviços de apoio ao imigrante, provavelmente por desconhecerem a existência de tais serviços e a participação na vida das associações de imigrantes apenas é referida por uma mulher não se encontrando, assim, estratégias sociais colectivas associadas à imigração.
Porque vieram estas mulheres? Curiosamente, na idade das diásporas (Bauman: 2007) e no mundo globalizado e desterritorializado "a viagem" de avião, solitária ou na companhia de outros, não foi mais um trajecto no seio de uma tessitura de outros trajectos.
A metáfora de Braidotti (1994) de mulheres movendo-se entre diferentes mundos, linguagens, trabalhos e lugares sem estarem ligadas a uma localização fixa revela-se atractiva para os discursos feministas e de género porque transmite a representação de mulheres "on the move", dotadas de estratégias para evitar o racismo e o sexismo mas mais não parece ser que uma metáfora. Celebrar a mobilidade só é possível em determinadas condições ou para determinadas mulheres.
A viagem para Portugal foi, na grande maioria dos casos, "a viagem", o ponto de viragem. A grande maioria das mulheres nunca tinha saído do seu país e mesmo da sua região. As datas de chegada são genericamente recordadas com precisão mesmo quando muito distantes no tempo: dia, mês e ano são enunciados com a solenidade com que se declamam as grandes datas, pelo valor simbólico e, também, naturalmente, pelo instrumental (uma vez que o tempo de permanência possibilita a autorização de residência e, logo, a aquisição de direitos). De resto, são excepção as mulheres que alimentam projectos de imigração para outros países e os projectos de vida circunscrevem-se a dois grandes sub-tipos: os projectos de retorno ao Brasil e os de permanência em Portugal (para além de projectos de compra de casa, de melhores ordenados e de estar mais próximo de quem se ama).
Porque vieram, então, as mulheres, é a pergunta que persiste. Por que vieram se a grande maioria estava satisfeita com as condições de vida nos seus países e com os seus trabalhos? A motivação foi (com uma excepção) económica. Vieram porque queriam conquistar melhores condições de vida para si e para os seus filhos. Mas vieram também porque encontraram dentro delas essa força interna que impele à mudança (a literatura sobre imigração relata que não são os mais fracos que imigram).
Em alguns casos as mulheres imigraram por decisão própria, tornando-se os verdadeiros actores do processo migratório, facto que traduz o maior poder das mulheres nos processos migratórios. Noutros casos, vieram em resultado de uma decisão conjunta do casal. Nestes casos ou vieram os dois juntos, ou as mulheres vieram antes dos maridos ou, caso mais frequente, os maridos vieram antes e as mulheres vieram mais tarde depois daqueles terem conquistado melhores condições (terem uma casa, um emprego e, por vezes, terem assegurado um emprego para as mulheres). Continuam a existir casos em que a decisão de imigrar foi dos maridos (ou pais) e em que a imigração das mulheres resulta, pois, de uma decisão na qual não foram escutadas. Em muitos casos os movimentos separam as mães dos filhos por um período de tempo mais ou menos longo (os filhos ficam pontualmente com os maridos e com as avós. Não vêm com as mães (e com os pais) porque não estando as mulheres regularizadas não têm possibilidade de os trazer, porque em muitas situações, se ouvidos na decisão, não querem vir ou porque, simplesmente, não estão reunidas as condições económicas para a sua vinda. Esta separação, sentida como uma ferida, não só impregna de frustração e de dor a experiência imigratória de algumas mulheres, como pode ter consequências negativas no desenvolvimento emocional das crianças e constituir factor de delinquência e criminalidade. Quando têm os filhos em Portugal (muitas vezes conseguem trazê-los decorridos vários anos de permanência em Portugal), estas mulheres têm que os deixar sob o cuidado de amas.
Mas não é apenas o afastamento dos filhos que marca as mulheres, mas também o dos pais e, em particular, das mães. As mães, que em alguns casos resistiram à vontade das filhas de partir, ficam nos países de origem e, em alguns casos, morrem sem ter oportunidade de rever quem partiu. E esse drama, não verbalizado, deixa necessariamente as marcas. É uma dor contida, sufocada que emerge nas entrevistas, mas que não pode ser contada por palavras.
Muitas mulheres conseguem manter e gerir verdadeiros espaços transnacionais, gerindo famílias residentes em mundos diferentes, contribuindo, através do envio de remessas, quer para o desenvolvimento das economias dos países receptores (ajudando familiares, investindo na aquisição de terrenos e de casas) quer para a economia portuguesa, como qualquer outro cidadão. Ficamos pouco esclarecidos quanto à forma como a imigração afecta as dinâmicas familiares, a autoridade das mulheres nas famílias, o seu grau de autonomia e o seu poder real. Verificámos que, tal como acontecia nos países de origem, continuam a ser as mulheres as principais responsáveis pelas tarefas domésticas, e que os casos de divisão de tarefas são pontuais. Quando as mulheres falam numa maior divisão, ela é narrada como uma inevitabilidade decorrente do intenso grau de cansaço com que chegam a casa, e não de uma alteração das mentalidades dos homens.
Seria interessante desenvolver estudos mais aprofundados sobre a questão das implicações da imigração e dos novos papéis económicos e responsabilidades das mulheres na esfera familiar uma vez que a participação no mercado de trabalho não promove automaticamente a igualdade entre a mulher imigrante e o seu marido/companheiro, podendo mais não ocorrer do que a transição de um sistema de patriarcado para outro. Até que ponto aumenta, de facto, o empowerment das mulheres, em particular de mulheres que exercem funções indiferenciadas como é o caso das que integraram o nosso estudo? Até que ponto a mobilidade como estratégia pode representar uma fonte de poder, de inovação social, de influência e constitui uma dimensão importante do capital social?
Porquê Portugal? A imigração do Brasil é um tipo de imigração que privilegia trajectos e que é determinada pelos laços coloniais do passado. As mulheres brasileiras apontam como razões de escolha uma cultura e uma língua comuns, proximidade e afinidades, e a existência de familiares em Portugal.
A experiência imigratória envolve perdas - saudades do clima, do calor, a falta de convívio com os entes queridos, o afastamento dos amigos. Mas também propicia conquistas outras para além da económica: conhecimento de novas culturas e de outras formas de ser e de estar. Conquista-se o distanciamento necessário para, por exemplo, reconhecer mais oportunidades educativas em Portugal (comparativamente às oferecidas pelos países de origem) ou para se deixar encantar com as rosas, com as praias e com os locais do país que vão descobrindo nos passeios por Portugal.
A proximidade e os laços sociais transnacionais com a família e com os amigos que se deixaram nos países de origem vão sendo mantidos graças às maiores facilidades de deslocação (apesar das viagens para o Brasil continuarem a ser muito caras) e ao desenvolvimento nas comunicações (as brasileiras recorrem a programas de comunicação via internet que permitem a visualização das pessoas e contribuem para uma impressão de maior proximidade). A proximidade e a sensação de estar a par do que se passa nos seus países é facilitada pelo facto de a grande maioria assistir a canais de televisão por cabo ou por satélite dos respectivos países (as brasileiras assistem ao Record e ao Rede Globo). Face às questões de saber se estão satisfeitas com os projectos migratórios e se hoje voltariam a tomar a mesma decisão, as respostas são maioritariamente afirmativas.
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