segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Arcelina Santiago O GÈNERO, A ACADEMIA E A GESTÃO

RESUMO
A universidade foi, em todo o mundo, fortemente marcada pelo género. E, se no passado, ela foi arena de dominação masculina, admitindo a entrada das mulheres apenas nos últimos séculos, no presente, esta questão ainda pode ser colocada, principalmente no novo paradigma de universidade. As mudanças que ocorreram e que marcaram mais recentemente a academia, agora segundo uma retórica mais empreendedora, poderão ser já relevadores de alguns efeitos nas questões do género: aumento do número de estudantes e docentes, mesmo em áreas antes apenas exclusivas da presença masculina, embora em pequeno número; presença em órgãos de gestão e governo da academia, a partir da década de 1990 (no caso Português). Assim, se, por um lado o cenário é ainda revelador de uma presença muito pouco visível pelo género feminino, em lugares antes nunca pensados como possíveis de ser liderados por mulheres, numa academia repleta de história de masculinidades, poderá, eventualmente, sugerir algumas mudanças. No entanto, estudos já efectuados sobre o impacto do managerialismo, em academias de países anglo-saxónicos, são importantes porque nos alertam para questões, não apenas sobre as questões do género, mas de outras que estão subjacentes e que determinam a própria missão da universidade na sociedade. Elas atingem todos os académicos, em geral, mas mais particularmente as mulheres, recém-chegadas a esta instituição, se tomarmos em conta a sua história multissecular.Fazendo a intersecção das questões do género com os vários modelos de universidade, constatámos que todos eles foram marcados por formas diferentes de perspectivar a sua missão, de produzir e difundir o conhecimento, de organização e de ligação com a sociedade. Evidenciando aquilo que é mais característico em cada um deles, poderemos começar por destacar no modelo medieval, a grande ênfase dada ao ensino e a particularidade dos saberes não serem independentes das verdades teológicas. Mas a ideia de universidade vai sofrendo alterações, impostas por pressões do poder político. No entanto, manteve inalterável, por muito tempo, o seu carácter elitista e selectivo, vedando a entrada a certos grupos, inclusive o das mulheres.Será mais tarde, com as reformas de Humboldt na Prússia e as de Napoleão em França que ocorre o advento do modelo de universidade moderna. A partir dos finais do século XVIII, o seu papel redefine-se. O que melhor a caracteriza em relação ao passado é o modo de organização do conhecimento, passando a ser institucionalizado, liberto da tutela da Igreja, do estado e das solicitações sociais e económicas. O traço da modernidade está na centralidade que a razão passa a ocupar, no novo quadro epistemológico. O ensino passa a ser concebido como um instrumento da busca do conhecimento, caracterizado por ser desinteressado, porquanto pretendia unicamente a procura da verdade, daí a valorização da investigação pura, liberta de pressões exteriores (Magalhães, 2001).O início do fenómeno da feminização, como alunas, nesta velha instituição multissecular, muito anterior às escolas públicas das primeiras letras, só vai acontecer em meados do século XIX, nos Estados Unidos e, em finais do século, no Reino Unido (Verger, 1994). Ele acontece de forma ainda mais tardia se nos debruçamos sobre o caso português, o que não é de estranhar dado que, em pleno final do século XIX, ainda se questionava sobre a natureza das mulheres (Araújo, 2000).O início da feminização nas universidades portuguesas, como docentes, aconteceu ainda mais tarde, acompanhado pelos mesmos contornos que rodearam as mulheres a nível internacional, nomeadamente, a resistência social e familiar.Com a chegada do empreendedorismo, assiste-se de novo a mudanças na universidade. De acordo com a nova perspectiva da globalização das economias, o produto académico torna-se uma mercadoria industrial e o conhecimento, a chave do poder económico. Destacamos, em especial, as mudanças que aconteceram a partir da década de 80, perante os desafios impostos pela nova economia. A universidade tende, então, a ser orientada por regras do mercado ou quasi-mercado, com tónica na competitividade, produtividade, racionalização de custos, negociação, avaliação, prestação de contas, investigação que traga vantagens e atracção de alunos e novas relações com os stakeholders[1]. (Amaral e Magalhães, 2000).Muitas das implicações daí advêm, nomeadamente, a própria valorização ou desvalorização de determinadas áreas de ensino e de determinado tipo de investigação, orientada agora por princípios económicos e novas formas de trabalho académico (Santos, 1994).Nestas mudanças, reconhece-se que as mulheres foram as mais afectadas, principalmente no que se refere à sua posição na hierarquia académica e, especialmente, em relação aos órgãos de topo, de gestão e de decisão. Esta conclusão prende-se com o levantamento de algumas situações que marcaram o universo feminino, a saber: encontrarem-se em posições inferiores de hierarquia quando se iniciou a competição, quer interna quer externa; concentrarem-se em áreas onde se destacavam como especialistas, mas desvalorizadas na nova retórica managerialista, sujeita às grandes restrições económicas; estarem muito pouco representadas na investigação e continuarem a assumir responsabilidades domésticas e familiares. Constata-se, então, que localizam-se em patamares inferiores quanto à categoria profissional, auferem salários mais baixo comparativamente com os seus colegas e encontram-se em situação mais precária de trabalho (Bett, 1999).Daqui podermos concluir que, apesar de algumas medidas introduzidas para promover a igualdade de oportunidades na academia, em todo o mundo, a posição das mulheres na hierarquia académica continuar ainda hoje precária, tal como foi no passado. Possivelmente porque as práticas e atitudes culturais são ainda impedimentos fulcrais para a existência de igualdade na mobilidade e na conquista dos órgãos de topo da hierarquia académica. Acrescentamos ainda que nos parece haver tendência para a situação se agravar para as mulheres académicas, principalmente por ter havido um decréscimo da representação das mulheres nos lugares de topo nas universidades em todo o mundo (Brooks; Mackinnon, 2001).O que se passa nas universidades é bastante semelhante ao que se verifica no mundo empresarial mas, no entanto, as mulheres académicas perspectivam as mudanças de forma diferente: umas reconhecem na nova academia, mais transparente e prestadora de contas, mais oportunidades, uma vez que também o modelo anterior não lhes deu oportunidades, outras, pelo contrário, focam as universidades como organizações não neutras e auguram um futuro pior.Os argumentos de alguns especialistas sobre o assunto, por exemplo, Brooks e Mackinnon (2001) dão-nos conta que a universidade foi, em todo o mundo, fortemente, marcada pelo género e que esta questão ainda pode ser colocada, principalmente no novo paradigma de universidade, onde as mulheres são as que menos ascendem a posições de gestão e liderança. A universidade continua a ser uma organização não neutra, e a própria divisão das organizações de acordo com os géneros provém da mais ampla concepção das normas sociais e da relação Homem / Mulher onde os seus membros tendem a ter comportamentos à luz dessa concepção (Acker, 1994).No tocante ao caso português, as mudanças de paradigma de universidade, apresentaram aspectos particulares dada a situação política económica e social a que o país esteve sujeito. Neste cenário, verificámos que as mulheres apresentavam os índices mais baixos de escolarização e, apenas um pequeno grupo proveniente de classes mais abastadas davam entrada no ensino superior.A aceleração do ritmo de mudança acontece a partir de 1960, com a crescente feminização no ensino superior. Este processo continuou de forma crescente pelos períodos que se lhe seguiram. Assim, em 1994-95, as mulheres constituíam já a maioria dos estudantes do ensino superior, exibindo uma taxa de sucesso, ou de conclusão dos cursos, superior à dos homens e acima da sua própria percentagem de frequência. No tocante à evolução da presença das mulheres como docentes no ensino superior, ao longo de três décadas, a partir de 1960, constatámos o seguinte: existência de uma evolução crescente, facto esse que relacionámos com o aumento do número de alunas e respectivas taxas de sucesso na conclusão dos cursos; forte concentração em áreas onde também melhor estavam representadas como alunas; localização predominante em áreas especialmente orientadas para o ensino e as mais desvalorizadas na carreira docente do ensino superior; localização em patamares inferiores, relativamente à situação profissional na carreira académica; fraca representação na investigação, principalmente em áreas ligadas à ciência e à tecnologia, ainda que o número de mulheres doutoradas tenha vindo a aumentar.Assim, as mulheres, recém-chegadas ao meio académico como docentes, têm vindo a acentuar a sua participação, embora estejam muito aquém relativamente ao grupo masculino. Conclui-se também não haver uma correspondência entre a evolução dos graus que as mulheres têm vindo a adquirir e a sua progressão na carreira académica (Amâncio e Ávila, 1995). Com a chegada das mudanças que marcaram mais recentemente a academia, agora segundo uma retórica mais empreendedora, poderão ser detectados já alguns efeitos nas questões do género: aumento do número de mulheres estudantes e docentes, mesmo em áreas antes apenas exclusivas da presença masculina, embora em pequeno número; presença em órgãos de gestão e governo da academia, a partir da década de 1990.ConclusãoA universidade continua a ser a ser uma organização não neutra, e a divisão das organizações de acordo com os géneros provém da mais ampla concepção das normas sociais e da relação Homem/Mulher, (Acker, 1994).Daí considerarmos importante os estudos já efectuados sobre o impacto do managerialismo na academia. Eles ajudam-nos a dar visibilidade à situação das mulheres na academia da actualidade. Eles tornam-se ainda mais pertinentes, porque as formas de organização e gestão das universidades cada vez mais se assemelham, orientando-se para os princípios manageralistas mais ou menos hegemónicos.Os obstáculos que têm impedido as mulheres de obter um melhor posicionamento na hierarquia da carreira académica têm a ver com factores internos e externos muito semelhantes nas várias academias o que nos leva a considerar que há dificuldades acrescidas para as mulheres no acesso aos lugares de topo da carreira académica, marcadamente definida pelo género masculino. Parece, pois, que as barreiras culturais e organizacionais da academia continuam a desfavorecer as mulheres, isto porque a cultura das universidades em todo o mundo, tende a valorizar e a reproduzir conceitos de carreira, realizações académicas e trabalho intelectual e institucional, baseados nas trajectórias de vida masculina como nos provaram vários estudos. Além disso as mulheres continuam a assumir responsabilidades familiares e domésticas que não são valorizadas no contexto de trabalho.Apesar dos dados apresentados não parecerem muito promissores para o futuro das mulheres na academia, não podemos deixar de abordar alguns indícios de possíveis mudanças, não apenas devido a um conjunto de medidas legislativas que vão de encontro a uma maior equidade entre o género na academia, mas também pelos estudos sobre mulheres que, dando-lhes visibilidade, poderão contribuir para a transformação da realidade e para a apresentação de uma perspectiva positiva do seu papel na academia.Acreditamos que a história de sucesso de uma instituição não depende, neste caso, só de homens ou só de mulheres, mas do conjunto de acções que ambos tomam e que proporciona o desenvolvimento, que contudo, deverá ter em conta não apenas os aspectos económicos, mas também os sociais e culturais. Torna-se acima de tudo importante apelar para que homens e mulheres possam reflectir e redefinir conjuntamente, como propõe Rosiska Darcy Oliveira, “um novo projecto de sociedade à altura dos recursos do século XXI, o desenho de uma nova arte de viver”(2003). Deste modo, dever-se-á repensar e redefinir políticas para a implementação de um novo estilo de democracia em que seja dada primazia ao “ser” sobre o “ter” o que implica também dar prioridade aos recursos humanos e culturais e ao estabelecimento de novas definições e formas de trabalho, na sociedade, baseadas numa real equidade entre os géneros.BibliografiaACKER, S. (1994) Gendered Education. Buckingham: Open University Press.AMÂNCIO, Lígia e ÁVILA, Patrícia (1995) “ O Género na Cíência “ in J.Jesuíno (coord): A Comunidade Científica Portuguesa nos Finais do Século XX. Lisboa: Celta EditoraAMARAL, Alberto e MAGALHÃES, António, (2000).” O conceito de stakeholder e o novo paradigma do ensino superior”, Revista Portuguesa de Educação, vol.13, nº2 (p.7-28) CEEP, Universidade do Minho.ARAÚJO, Helena Costa (2000) Pioneiras na Educação: as Professoras Primárias na Viragem do Século.1ª edição, Porto: Afrontamento.BROOKS, Ann e MACKINNON, Alison (eds.) (2001) Gender and the Restructured University: Londres. Open University Press.DEEM,R.(2001)“Globalization, New Managerialism, Academic Capitalism and Entrepreneurialism in Universities: is the local dimension still important?”, Comparative Education, vol. 37 (1) p.p. 7 - 20.MAGALHÃES, António (2001) Higher Education Dilemmas and the Quest for Identity: Politics, Knowledge and Education in an Era of Transition, University of Twente.OLIVEIRA, R.D.(2003) A Reengenharia do tempo: Rio de Janeiro. RoccoSANTOS, Boaventura de Sousa (1994) Pela Mão de Alice.O Social e o Político na Pós-Modernidade. 7º edição, Porto: Edições Afrontamento.VERGER, J ; C. Charles (1994) Histoire des Universités.Paris :PUF.[1] Termo utilizado por Alberto Amaral e António Magalhães (2000) nos seus estudos, para significar o conjunto de pessoas ou entidades com legitimo interesse no ensino superior e que como tal adquire algum direito de intervenção.

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